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Homilia de D. José Ornelas nas Exéquias de D. Manuel Martins

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Hoje reunimo-nos neste emblemático mosteiro de Leça do Balio, testemunha histórica da vida e das vicissitudes do nosso povo e da fé que o tem guiado ao longo dos séculos, para restituir à terra que o viu nascer, o corpo de um homem e um bispo que conclui, no meio de nós, um percurso de vida que marcou os últimos decénios da história recente do nosso país e da Igreja que aqui tem profundas raízes.

Encontramo-nos aqui sobretudo representantes dos muitos mais que gostariam de se ter juntado a nós das dioceses que mais beneficiaram da vida do Senhor D. Manuel Martins: a Diocese do Porto onde ele nasceu, se desenvolveu, formou e começou o seu serviço à Igreja, e a Diocese de Setúbal, da qual foi o primeiro bispo e onde floresceu e deu abundante fruto o seu cuidado de pastor e o seu sonho de uma sociedade fraterna e solidária, especialmente atenta aos seus elementos mais frágeis.

As leituras da Palavra de Deus que acabamos de proclamar iluminam bem o percurso de vida do homem e do Bispo D. Manuel. Ele foi alguém que entendeu, antes de mais, que Deus é um Pastor cuidadoso do seu rebanho, como nos diz o salmo de hoje. Um Pastor que conduz os seus com sabedoria e cuidado, que está próximo e conhece individualmente cada uma das suas ovelhas, dando especial atenção àquelas que são mais débeis. Um pastor que não se poupa para dar confiança e vida àqueles que reúne e orienta, libertando-os da miséria, do medo e da morte.

O próprio D. Manuel se sentiu assim tratado, chamado e conduzido por Deus e dele aprendeu a cuidar a dedicar-se aos outros como cuidador sensível e misericordioso para com o seu povo. Assim se encheu de gosto e preocupação de estar perto daqueles a quem foi enviado, de defendê-los de quantos os manipulam e exploram, de encher-se de “com-paixão” pelas suas dores e feridas, perseguindo, sem descanso, o sonho de um mundo de justiça, de fraternidade e de paz. Entendeu que foi para isso que o Bom Pastor o chamou, como fez com Moisés, o libertador das opressões, com os profetas e as vozes inconformadas da humanidade e da Igreja, que denunciaram a injustiça e proclamaram a libertação e a dignidade em nome de Deus Criador e Pai de todos e cada um dos seus filhos e filhas sobre esta terra.

  1. Manuel entendeu muito bem a radicalidade dos critérios de Jesus, o Mestre que ele aprendeu a seguir, que denuncia, no Evangelho que acabámos de escutar, uma religião desenraizada das dores e esperanças dos homens. Por isso ergueu a voz em denúncia das atitudes, políticas e economias que se esquecem dos milhões de pessoas – sobretudo dos mais frágeis e indefesos – que têm fome e não encontram quem os ajude na busca de comer; têm frios que ninguém cobre, são emigrantes e refugiados e encontram muros de rejeição e de preconceitos à sua frente; estão sem trabalho e deparam com pessoas e sistemas que os exploram ou tornam impossível a dignidade de poderem sustentar-se e prover às necessidades das suas famílias; erram e não experimentam abraços de reconciliação e reabilitação, mas apenas dedos apontados e sistemas prisionais vingativos. Por isso D. Manuel deu voz de indignação, como fez o seu Mestre, para chamar “malditos” e destinados ao fracasso, aqueles que exploram ou se demitem de denunciar e reverter as situações de injustiça e de exploração.

É à luz do mesmo Mestre e Senhor que a palavra e a existência de D. Manuel proclamam que “passamos da morte à vida, porque amamos”, como nos diz São João, na primeira leitura que escutámos. Por isso ele se tornou um homem solidariamente criativo, para apoiar e cuidar dos que eram deixados à margem das grandes manobras económicas, para congregar pessoas de boa vontade e promover obras que servissem os que mais precisavam. Por isso se tornou homem de pontes e de diálogo, buscando consensos e colaborações, para que, com todas as pessoas de boa vontade, possamos criar juntos um mundo mais humano e justo, onde sejamos mais cuidadores e menos predadores. Esta sua atitude deixou um estilo matricial na Diocese de Setúbal.

Mas, sobretudo, guiado pelo coração do Pastor que o chamou, ele tornou-se um pastor próximo e cuidadoso dos seus presbíteros e diáconos, pronto a acudir aos que fraquejavam e a apoiar os que avançavam, guiando-os, com palavras e exemplo no serviço das suas comunidades. Por isso percorria as paróquias, instituições e associações, promovendo encontro, conhecimento e mediação, para construir uma civilização de respeito pelas diferenças e promotora de dignidade para todos.

E tudo isto Dom Manuel fez, pela sua absoluta convicção no poder e amor de Deus revelado no Senhor Jesus, cujo chamamento escutou, a quem seguiu e imitou, como homem, como crente, como pastor e Bispo. A sua vida e, agora, a sua morte, são expressão de uma inabalável confiança no seu Senhor a quem se entregara, num relacionamento alimentado diariamente numa oração de comunhão com a fonte da vida e do ministério que desempenhou.

Quando morreu, tínhamos acabado de ler, na celebração dominical, a expressão de Paulo que dizia: “para mim, viver é Cristo, e morrer um lucro”. Hoje, o nosso Bispo, também parte, livre de todas as canseiras e preocupações, ao encontro do Senhor que seguiu e serviu ao longo da sua peregrinação na terra. Não deixa riquezas, a não ser o bem que fez a tanta gente, as dores que aliviou, as esperanças que criou, a fé que testemunhou, com a palavra e com a vida. Assim partiu ao encontro do seu e nosso Senhor, que um dia o chamou a segui-lo no serviço do seu povo e que hoje renova o seu chamamento dizendo: servo e discípulo fiel, segue-me também na minha morte e na minha ressurreição.

Na nossa Igreja de Setúbal, aqui representada por muitos dos seus fieis e pela maioria do seu clero, agradecemos a Deus, que nos enviou este homem, Dom Manuel, como primeiro Bispo, que marcou o nosso caminho de serviço ao Evangelho no cuidado do povo de Deus.

Agradecemos à família onde ele nasceu e cresceu bebendo, com o leite materno, os elementos fundamentais do amor, do cuidado humano e terno, da solidariedade sem cálculos económicos; família que lhe proporcionou, nestes últimos anos, o apoio que requeria a sua idade avançada. Bem hajam!

Agradecemos à Diocese do Porto, onde ele cresceu na consciência adulta da fé e do serviço humilde e fraterno, que cria comunhão de irmãos e irmãs, conscientes do amor universal e personalizado do Pai do Céu; Igreja onde, no seguimento de outras vozes proféticas como a de D. António Ferreira Gomes, aprendeu a erguer-se para denunciar injustiças e apontar caminhos. Agradecemos a Deus e a todos pelo dom precioso, aqui nascido e que floresceu em Setúbal, deixando à Igreja em Portugal uma preciosa herança de humanismo, de fraternidade, de coragem e de fé. Que o seu exemplo seja semente de uma Igreja viva, fraterna, misericordiosa e missionária!

Obrigado, caro D. Manuel,
nosso Bispo, nosso irmão e companheiro
na peregrinação desta terra
e no caminho da humanidade
em direção à plenitude da vida junto do Senhor ressuscitado.
Bendito seja Deus que o enviou a nós, como primeiro Bispo,
colocando uma figura tão inspiradora
nas origens da nossa Igreja de Setúbal.
Que o Bom Pastor o receba nos seus braços de misericórdia
e nos faça cuidar e fazer crescer
as sementes de Evangelho que você foi lançando
nas terras fecundas de Setúbal,
na nossa Igreja, no nosso país e no mundo.

+ José Ornelas Carvalho, Bispo de Setúbal

Leça do Balio, 26 de setembro de 2017

Foto: João Lopes Cardoso | Diocese do Porto

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27 de Setembro de 2017