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Fazer caminho no Caminho

compostela

Chegado o Verão, «ferve» o Caminho de Santiago: de todos os lugares da Península (e de alguns bem para lá dela) confluem dezenas de milhar de caminhantes, ciclistas e cavaleiros à cidade onde se acredita estar sepultado Tiago Maior, o Apóstolo de Jesus que primeiro entregou a sua vida. Também alguns peregrinos de Setúbal se fizeram ao Caminho este ano, e esta é a crónica dos seus dias, das suas dores, dos seus encantos e desalentos, do rir e do silêncio. Ao fim e ao cabo, de um «concentrado de vida»…

 

 

Sobe-se. Por entre o verde dos pastos e centenas de vacas, sobe-se. E continua-se a subir. «Mas será que isto vai até à altitude dos aerogeradores»? – pergunta alguém, com medo da resposta. «Não deve ir, isso é muito alto», responde-se. Mas é que vai mesmo: quatro quilómetros a subir, e empinados, até ao planalto onde «mora» Gontán, o primeiro albergue que acolherá o grupo dos oito que agora, ainda por cima, é fustigado pela inesperada chuva de Agosto e pelo inclemente vento da Galiza. Mondoñedo, a pequena cidade onde os bispos de Dume, junto a Braga, se acolheram na invasão muçulmana, mais a sua escura catedral, ficaram lá no fundo do vale. Já era meia etapa: agora só faltava o albergue.

Neste já só havia lugar para sete: um tinha de ficar na carrinha (é de regra: os que levam carro de apoio «saltam» para o fim da lista de prioridades de alojamento, se por acaso há dificuldades em alojar quem chega) mas depois, por entre peripécias várias, lá acabou por dormir no interior. Foi a primeira noite, recheada de ressonadelas, tropeções no escuro e, lá fora, uma bela borrasca de vento e chuva.

 

Mazelas

 

Na manhã seguinte, saiu-se cedo, mas não demasiado, que caminhos de terra depois de chover são armadilhas de lama. À espera, uma etapa de 40 quilómetros, até Baamonde, uma pequena vila já chegada bem mais para o Sul.

E começam as mazelas: as primeiras bolhas, as dores nos joelhos, nos tornozelos… por muito que seja preparado, o primeiro Caminho de Santiago tem sempre estas «companheiras», que servem como «cicatrizes» interiores e «troféus» para quem, noutros anos, repete a caminhada. E aqui não há grande diferença: as «empanadas» (não, não é o petisco galego…) e os «empanados» distribuem-se por igual, entre os quatro representantes de cada sexo. Alguns virão a ter dificuldades maiores, mas todos chegarão ao fim com a consciência de esforço feito e desafio vencido.

Florestas de castanheiros e carvalhos, estragadas já por eucaliptos, vão acompanhando o Caminho do Norte, o tal que, este ano, de entre os vários possíveis, conduz os passos dos peregrinos de Setúbal até Santiago. Está bem marcado: as vieiras, símbolo jacobeu por excelência, indicam a direcção a tomar para a cidade apostólica. Aqui e ali, setas amarelas, para ajudar a resolver as dúvidas sobre onde virar e que estrada seguir. As primeiras horas de cada dia de Caminho são passadas em silêncio: é o tempo para cada um se encontrar com Deus, oferecer a vida, perguntar pela vida, responder… Não se torna pesado o silêncio: mais pesado se torna interrompê-lo, e é com naturalidade que, ao longo do dia, se volta a ele espontaneamente, mesmo que já não imposto.

Vilalba e o seu albergue futurista ficam para trás, e quase se é atropelado por uma pequena manada de vacas num tempo de descanso. Mais dores, mais esforço, mais caminho… e novo albergue, este maior, com outros peregrinos (bem simpáticos por sinal) a comporem a moldura humana. À noite, num restaurante muito próximo – e barato – o fantástico caldo galego, que caiu optimamente depois de um dia muito duro. Na manhã seguinte, mais 40 esperavam…

 

Visões de filme

 

A saída de Baamonde é por asfalto (que é bom para carros, mas o pior piso onde se pode caminhar) e sempre ao lado da linha férrea. A dada altura, entra-se na floresta e dá-se a surpresa: por entre carvalhos e castanheiros, surge do meio do nevoeiro a parede de pedra de uma abside românica; ao lado, um cruzeiro abençoa uma fonte que brota com suavidade, fazendo juntar as suas águas às da ribeira que corria um pouco mais atrás. Visão de êxtase, poética, de autêntico filme e sem efeitos especiais. San Bernarde: um nome a reter.

A lusitana dependência do café faz conhecer alguns tascos pitorescos que vivem essencialmente dos peregrinos que passam. O café, esse, é mauzinho, e na Galiza ainda não aprenderam com os manos portugueses que as colheres de café são pequeninas… Bom, haja cafeína!

Sobrado dos Monxes, o grande mosteiro cisterciense onde fica o próximo albergue, faz-se longe, e os pés e pernas acusam o esforço. Calor, muito calor, e muita subida outra vez, e o bendito mosteiro nunca mais… Mas enfim, lá os acolhe no seu claustro iluminado pelo sol da tarde, onde outros peregrinos gozam já do retempero. Depois de um banho com temperatura para depenar galinhas, Vésperas Solenes com os monges: para alguns, é a primeira vez, num olhar de espanto que diz tudo… outros cabeceiam, vencidos pela monástica melodia. Cedo, o claustro enche-se de silêncio: é o tempo do repouso. Como estão longe o Feijó, o Castelo de Sesimbra, a Amora, Pinhal de Frades, Setúbal!

 

Aproximação

 

O dia seguinte faz-se por um concelho com um nome engraçado – Boimorto – onde alguns, mercê das dores e do desconforto, têm de ser ajudados pela carrinha. É uma frustração não poder fazer esses poucos quilómetros, mas às vezes é necessário, para prevenir coisas piores. Chegados a Arzúa, não há lugar no albergue da Xunta da Galiza, e há que procurar outro alojamento. Apesar de tudo, é coisa que não falta: Arzúa já está no Caminho Francês (onde entronca o Caminho do Norte) e o Caminho Francês, por ser o mais famoso, está totalmente massificado, feio até de tão descaracterizado, uma autêntica auto-estrada de peregrinos e, sobretudo, bicigrinos, como agora chamam ao que fazem o Caminho de bicicleta, por vezes uma autêntica praga que enxameia albergues e os sítios mais estreitos de passagem dos que vão a pé. Enfim, caminhe-se ou rode-se, que se vá a Santiago!

No dia a seguir é a chusma: faltam 40 quilómetros, e há gente, muita gente pelo Caminho. O grupo de Setúbal vai até ao monte do Gozo (que fica quatro Km antes) último albergue antes de Compostela, e deixa para trás uma multidão imensa que pretende ficar no albergue intermédio de Pedrouzo. Passa-se o aeroporto de Santiago, sobe-se uma encosta pavorosa e finalmente, depois de passar ao lado de todas as delegações televisivas espanholas na Galiza (exagero, são só duas, mas o dia vai longo e está tudo cansado…) eis o Monte do Gozo.

No dia a seguir, os quatro quilómetros devoram-se em descida, num ápice: o centro antigo de Compostela já acolhe o cansado grupo, que se detém, feliz, diante da fachada da catedral, na Praça do Obradoiro. Após a foto da praxe – troféu de conquista – entrada para o abraço à imagem de S. Tiago, e para um intenso momento de oração na cripta, junto ao túmulo. Ir buscar a «Compostela» – o certificado que comprova como a peregrinação foi mesmo feita nas devidas condições – é a próxima tarefa, que se despacha rapidamente. Às 12h, a Missa do Peregrino, o culminar do Caminho, o descanso e o refrigério de corpo e alma. Incensados pelo enorme botafumeiro, o grupo vai procurar refúgio nesse dia e na noite seguinte. Não é difícil: o Seminário Menor é bastante grande e serve de albergue para os que foram ao encontro do Apóstolo. No dia seguinte, é tempo de voltar. Mas fica a esperança de um retorno, e se possível, mais uma vez, a pé… se Deus ajudar, assim será!

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13 de Setembro de 2011