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Entrevista de D. Manuel Martins, I Bispo de Setúbal, nos 40 anos da sua Ordenação Episcopal

Ordenação D. Jose e Imagem peregrina 083

Para os que tiveram de suportar a contragosto a sua acutilância pastoral e cívica, era o «Bispo Vermelho». Para os que naturalmente se dobraram diante do seu carisma e verticalidade de alma, era o «Primeiro dos Setubalenses». Para os que os que o acolheram como Pastor é ainda hoje aquele que fez da Diocese sadina aquilo que é: Terra de Esperança, Terra de Missão.

D. Manuel Martins continua a falar com horizonte, a olhar para a Igreja e para a «sua» Setúbal com grandeza. Com carinho especial recorda os «seus» padres e os «seus» fiéis, que juntamente com o Pastor alargaram caminhos onde ainda poucos tinham pisado. Esta entrevista foi concedida no conforto da casa onde habita agora com os seus familiares, e poucos dias depois de ter voltado da Visita ad Limina, a Roma, onde juntamente com os outros prelados de Portugal se avistou com o Santo Padre e ouviu as suas apostas para a Igreja que por cá peregrina.

 

«O Santo Padre é de facto especial, tem uma forma especial de estar connosco, de falar connosco», lança, embora sem deixar de fazer uma comparação com as outras visitas em que participou durante os pontificados anteriores: «O esquema é diferente logo porque as pessoas são diferentes», admite. «Víamos o Papa lá longe, mais distante, e não estranhávamos – era o Vigário de Cristo na Terra, não é – mas vendo bem até parece estar mais conforme agora com o Cristo que queremos ver na Terra, com esta maneira singela, simples de estar e de falar», e reforçou com o exemplo das palavras que dirigiu às famílias em Filadélfia, no último Encontro Mundial. «Estas mostram bem a simplicidade, a paternidade e a fraternidade que vivem dentro daquele homem invulgar», considerou.

Talvez por isso as palavras do Papa na alocução que dirigiu aos bispos de Portugal lhe tenham ficado bem gravadas na memória: «Ele focou muito o drama dos refugiados, os milhares de mortos, de um presente de sangue e de um futuro desconhecido», disse; «é um drama para o qual temos de chamar muito a atenção das nossas comunidades, é um drama de humanidade. Temos de chamar a atenção da nossa gente para esta presença da compaixão, para esta dimensão fraterna da nossa vida».

A este propósito, lamenta que «o coração, a dimensão sentimental» esteja muitas vezes arredada da ação pastoral concreta, pelo menos em algumas dimensões: «Por exemplo para com os doentes, e mesmo nos padres doentes. É possível estar um padre doente durante anos, e no hospital, e não ter um colega que o visite; é uma traição que fazemos a uma obra de misericórdia que é visitar os doentes»! E remata: «É fundamental chamar a atenção para esta comunhão também nestes momentos, fraterna e inteira».

«O Santo padre pediu-nos que fizéssemos tudo para impedir a globalização do egoísmo, da frieza, da falta de interesse. Precisamos de um mundo com coração». «Isto foi o que me impressionou mais nas palavras do Santo Padre». «Quando a Igreja olha para estes dramas sociais – conclui – não o deve fazer “por favor” mas porque é norma “constitucional” da nossa ação eclesial e pastoral».

 

Sínodo é uma pedagogia

 

D. Manuel confessou-se também impressionado pelas palavras do Santo Padre acerca da família. «A família deve ser o espelho da Santíssima Trindade, um retrato de Deus», e por isso mesmo devemos fazer os possíveis «por a ajudar a ser isso mesmo». «Este é o tema no qual o Santo Padre tem encontrado maior oposição, acho. Julgo que vai ser um foco muito descontentamento, decida ele o que decidir, de muito ataque, claro ou velado». E remata: «Julgo que é por causa disto que ele acaba todas as suas intervenções dizendo “rezai por mim”!»

Quanto ao Sínodo sobre a Família, a terminar por estes dias, D. Manuel Martins tem também uma ideia clara: «Acho que em vários casos se faz uma interpretação abusiva das perguntas que foram feitas, e eu acho que elas não são mais que uma pedagogia eclesial. O Santo Padre quer que a Igreja tome consciência do seu ar comunitário, da sua responsabilidade no que diz respeito às grandes questões; fazer perguntas sobre a doutrina não significa que a resposta tenha de ser algo contra a doutrina, contra a tradição, contra o Código, mas sim para pedagogicamente fazer descobrir a Igreja que ela é comunidade e tem palavra».

 

«A palavra debandada é exagerada»

 

D. Manuel também fixou a palavra do Papa relativa á juventude, e á suposta «debandada» desta da Igreja. «Isso foi uma coisa muito “engordada” pela comunicação social», desvalorizou; «é verdade que a juventude se afasta e deve ter sido sempre assim em todos os tempos, em todas as gerações, com as devidas proporções, obviamente agora maiores por causa das muitas solicitações que hoje existem, mas eu pessoalmente julgo que a palavra debandada é exagerada, e que se escreva com letra pequenina! Nós os bispos vemos a juventude em todo o lado»! E concretiza até: «Fiquei muito contente que o Senhor D. José [Ornelas] tivesse focado na sua mensagem á Diocese os escuteiros, porque é um grupo de jovens numeroso que não é muito mencionado». «Mas eles estão em todo o lado: desde os acólitos, ao grupo paroquial de jovens, aos grupos corais… É até um pecado, é antipedagógico falarmos em debandada!»

«Claro que temos de lhes dar uma catequese apropriada, e fazermos todos os possíveis para que continuem e enriqueçam e atualizem a sua fé, para não ficarem só pelo “fatinho da Comunhão”», reconhece.

«Falamos do Crisma muitas vezes como a cerimónia do adeus à vida de Igreja… nós é que temos culpa disso, porque se tivéssemos uma catequese em condições isso não acontecia. Isto põe um problema muito sério sobre o tipo de evangelização que nós fazemos».

 

Há falta de referências vocacionais

 

E daqui salta para o âmbito vocacional: «As vocações que temos hoje, pelo menos do que eu conheço, não são fruto de uma trajetória normal de uma catequese. Porque é que as vocações muitas vezes nascem “isoladas” e não assim da oração de uma comunidade, de um percurso numa comunidade»? Mas claro que não é só essa a causa, como esclarece logo a seguir: «Outro problema é a falta de referências, das quais a primeira é a do padre, de como está, como reage, como vive, e isso não convém esquecer. Nós até dizemos de altar abaixo que é preciso, mas o trabalho que está antes disso, se calhar não o fazemos».

A propósito do seminário da Diocese de Setúbal, que criou e acalentou, afirma que «é uma possibilidade de acompanhar melhor um rapaz que se põe o problema da vocação. Mas hoje em dia há muitos bispos a perguntar-se se temos os seminários que devíamos ter, se não funcionam como alojamentos… a Universidade – que é uma coisa boa – põe-nos o problema de estudar mais profundamente como deve funcionar o seminário, porque este pode coexistir com muita dispersão». «Eu sempre tive muita facilidade nesse acompanhamento, porque eramos um número pequeno, o que tornava o meu acolhimento e o meu acompanhamento mais fácil, mas o Seminário tem de merecer a preocupação, a atenção e a presença de um bispo, porque é um espaço e um tempo onde os rapazes hão de passar e aprofundar a sua relação com Deus e a necessidade de se doar».

Quando interrogado sobre o diaconado permanente, que D. Manuel restaurou, fazendo de Setúbal uma das Dioceses pioneiras em Portugal na implementação desse desidério do Concílio Vaticano II, diz muito claramente: «É uma questão da verdade da Igreja, um desejo do Concílio, e não estou nada arrependido! E recordo-os com muita saudade». E reforça: «A motivação foi pastoral, foi teológica, doutrinal, sem qualquer nenhum outro propósito, e estou muito contente com o serviço que prestaram e prestam». Admite que no início «houve assim uma certa desconfiança relativamente aos diáconos, sobretudo por parte de alguns padres, mas se é de instituição divina, se o Concílio Ecuménico o quer então é de seguir a Igreja», e também admite («mas é uma opinião muito, muito, muito pessoal», ressalva) que «talvez estejam a ser ordenados demais em algumas dioceses, o que nos vai fazer cair outra vez numa certa má vontade dos padres contra o diaconado permanente, e isso é o que eu observo». «É bom que a Igreja ordene diáconos permanentes, mas não pela falta de sacerdotes, porque é uma realidade que vale em si. E também é bom que sejam muito acompanhados depois».

 

«Escolheria sempre Setúbal»!

 

Volvidos 40 anos sobre a sua ordenação episcopal, e interrogado diretamente sobre como olha para a Diocese de Setúbal, responde sem hesitação alguma: «Olho-a hoje como a olhava ontem e como a olhei no primeiro dia! Pergunto-me como é que é possível que Deus Se tivesse lembrado de mim, primeiro para que fosse bispo, e depois para que fosse bispo de Setúbal». E reforça: «Disse-o sempre e digo-o hoje, que se me dessem a escolher qualquer diocese, eu escolheria Setúbal! É a melhor Diocese do país, a melhor porque é que nos provoca mais! É uma Diocese muito provocadora, e continua a ser! Nós ás vezes é que não prestamos atenção às provocações»!

E continua, ligeiramente provocador também: «Uma Diocese como Setúbal tem muito de provocadora, porque a população é toda muito desigual, logo na idade e nas ocupações, nas mentalidades…». E continua a exemplificar: «Quando eu estava lá os jovens eram mais de cem mil, 70 por cento da população não era de lá… ora os encontros e desencontros desta realidade eram uma provocação permanente». «Nos 23 anos que estive lá – realça – nunca tive um problema de povo com padres, nem padres com povo! Aqui, quando era vigário-geral, quase que perdia a minha fé com as questões e questiúnculas que me iam por de um padre que não levava lá um santo que eles queriam na procissão, ou que a procissão não ia por aqui mas ia por acolá! Lá nunca houve nada disso, e foi sempre uma diocese muito recetiva»!

«Ainda agora disse ao senhor D. José – revela – que levasse muitas caixas de fósforos, porque assim que acedesse um, ardia»! «Aquela Diocese não pode ser constituída nem formatada nos moldes das outras, porque em cada paróquia é tudo muito diferente, com tudo novo, com populações novas…». «É tudo novo, chamativo, provocador! Não há assim muitas instituições antigas, confrarias, canonicatos, de maneira que trabalhamos à vontade com pessoas que aparecem assim também».

 

«Foi Setúbal que me fez»

 

Refere uma palavra de Almeida Santos a seu propósito: «Ele escreveu para aí nuns prefácios – e é verdade – que foi Setúbal que me fez»; e recorda: «Eu não conhecia Setúbal, nem nunca lá tinha ido, ia como um anjinho», conta divertido; «Sabia que havia muita agitação e muita vontade de terem um bispo assim lá com certas características, isso era público. Nunca me tinha passado pela cabeça ser bispo! Quando o Núncio Apostólico da altura me diz que era para ser bispo, e em Setúbal, lá lhe apresentei as minhas razões, e uma delas era essa, q nunca lá tinha ido nem conhecia nada, a não ser que era uma terra em convulsão muito grande e que pelos vistos já se apontava um outro padre como bispo de lá, pelo que era um pedido difícil».

Pediu oito dias para pensar «e para consultar até o meu Bispo, D. António Ferreira Gomes». O Núncio interrompe: «Ah, mas quer saber o que o seu bispo pensa de si? Tenho ali a carta e vou buscá-la»! «E pronto, acabei por aceitar»!

Quanto ao que recorda das reações à sua nomeação e entrada, conhece-as bem: «Houve umas reações de gente mais intelectualizada, lá com as suas razões; e depois houve outra reação, que não teve nada a ver com aquela, que foi a da entrada, e que na verdade nunca foi identificada». «Recordo que no dia da Ordenação – prossegue – andei logo á vontade cá por fora e não houve questão nenhuma. Mas nunca foi verdadeiramente identificada, e eu também na verdade nunca me interessei muito por isso», admite. «Dizem que aquela juventude que andava por ali nas esplanadas, ao ver o aparato de carros, começou a perguntar-se o que se ia passar, e ao saber que era um bispo, se juntou para protestar. Eu não ouvi nada de nada, mas fui assim tirado pela porta de trás, estranhamente para mim, e levado até á Anunciada, a um salão que lá havia, para um Moscatel de Honra. O normal seria que eu viesse pela porta grande e desse a Bênção a toda a gente que ali se tinha juntado, e que tinham vindo da minha terra, do Porto, mas não! Depois é que eu vim a saber, e dou graças a Deus, porque acho que insultaram tanto aquela gente, com os gritos de “não precisamos de bispos do Norte, bispo reacionário, mais um dono da Renascença”»! «Aquilo lá se acalmou, mas imaginem que tinha havido tumulto! A polícia recusou-se a tomar conta da situação, e foi preciso ir lá a polícia do Exército e tudo… isto foi o que eu soube depois».

Recorda com alegria algumas das coisas que fazia nos primeiros tempos: «Pedia aos padres para não me ocuparem aos domingos de tarde. Ia ali para o Poceirão e Fernando Pó, e aia como as testemunhas de Jeová, a bater á porta, de porta em porta, coisas fantásticas!»

 

 

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09 de Novembro de 2015