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II Catequese Quaresmal 2016

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Catequese na íntegra de D. José Ornelas, na II parte, no Santuário de Cristo Rei.

II

O PAI MISERICORDIOSO

(Lc 15,11-32)

Introdução

Continuamos hoje a reflexão iniciada no domingo passado, na catedral de Setúbal, sobre o Coração misericordioso de Deus. Meditámos como este amor se revela desde a criação e está patente ao longo de toda a história humana. Ele revela-se de modo singular na história do povo de Israel e atinge o seu ponto culminante em Jesus de Nazaré, presença solidária e salvadora, que abraça toda a humanidade e toda a história. Demo-nos conta também que somos parte de uma humanidade frágil e pecadora, que frequentemente não entende o projeto de Deus e assume atitudes que lhe são contrárias, pondo em risco a nossa vida, a daqueles que nos rodeiam e a do nosso planeta. Perante a nossa incapacidade e o nosso pecado, Deus não se comporta como frio juiz ou autoridade distante. Perante o homem débil e pecador, o amor de Deus torna-se misericórdia e proximidade solidária, até se tornar presente, no meio de nós, no seu Filho Jesus.

Nesta e nas próximas reflexões, vamos fixar a atenção na revelação do amor misericordioso de Deus em Jesus, que se manifesta em todos os domínios da vida, criando um modo existencial novo, que transforma a pessoa e a sociedade e abre à nossa finitude humana os horizontes da vida imortal junto de Deus.

Tomamos hoje, como centro da nossa reflexão, uma joia das palavras de Jesus: a parábola do Pai misericordioso, ou, como habitualmente é chamada, a parábola do “Filho Pródigo” (Lc 15,11-32). Deixamo-nos, assim, guiar pela palavra de Jesus, para entender o que Ele nos revela do coração do Pai do céu. Não farei um comentário sistemático a esta parábola, mas sublinharei alguns dos seus aspetos mais importantes, onde se revela a atitude de Deus para com o homem limitado e pecador.

1. Entender a parábola

Comecemos por prestar atenção a alguns aspetos importantes para entender a razão e o significado da parábola. No Evangelho de Lucas, esta é a última de três parábolas sobre a misericórdia de Deus: A ovelha perdida (15,4-7), o dracma perdido (Lc 15,8-10) e a nossa parábola, que se apresenta como “o filho perdido” ou, melhor, “o Pai misericordioso”. As três parábolas têm a introdução que ouvimos ler:

Aproximavam-se dele todos os cobradores de impostos e pecadores para o ouvirem. Mas os fariseus e os doutores da lei murmuravam entre si, dizendo: “Este acolhe os pecadores e come com eles.” Jesus propôs-lhes, então, esta parábola… (Lc 15,1).

Esta introdução fornece três indicações importantes. Em primeiro lugar, diz que o modo de agir de Jesus, concretamente a sua proximidade para com os pecadores, era criticado pelas autoridades religiosas do seu tempo. Em segundo lugar, mostra que a parábola constitui a explicação para este modo de agir. Finalmente, afirma que estas atitudes de Jesus são consequência e revelação do modo como Deus age. Embora o nome de Deus não seja nunca mencionado ao longo do texto, é evidente que é Ele que está por detrás da figura do pai, nesta última parábola.

Estas primeiras observações já indicam que a parábola não pretende acender uma discussão teórica, mas visa modos concretos de ver e de agir à luz da atitude de Deus, revelada no modo como Jesus se comporta, concretamente, em relação aos pecadores. Deste modo, a história contada por Jesus tem, de imediato, um caráter interpelador para a inteligência e a fé, ao mesmo tempo que desafia os comportamentos que assumimos na vida. É neste tom que vamos prosseguir a sua meditação.

 

2. A busca ilusória da liberdade

A parábola tem início com o pedido do mais novo dos dois filhos para que o Pai lhe entregue a parte da herança que lhe toca, de modo que possa desenvolver autonomamente os seus projetos de vida. É óbvio que o pedido não representa uma boa maneira de proceder. O filho inicia o próprio caminho de autonomia com os bens do pai vivo, como recorda o irmão mais velho: “malbaratou os teus bens” (v.30). A sequência da história torna muito mais séria a situação: fora da casa paterna, o filho revela não ter capacidade nem sabedoria para gerir o património recebido e rapidamente o desbarata, ficando reduzido à miséria e vendo-se obrigado a uma vida indigna e faminta. De facto, guardar porcos e partilhar a sua comida, é particularmente humilhante e degradante para a mentalidade judia, que considerava impuros estes animais.

Como um adolescente impaciente, o filho mais novo quer viver o seu sonho e acha que a casa do pai não é suficiente para si; que, enquanto estiver na casa paterna, nunca será um adulto. Por isso decide partir, prescindindo do pai, embora utilizando o seu património. É uma atitude semelhante à do discurso da serpente, da narração da criação, a que nos referimos na primeira reflexão: Deus é um obstáculo à plena expansão do homem. O pecado começa com a incompreensão do amor e do projeto de Deus.

A reação do pai não se descreve inicialmente. A parábola não quer explorar a emoção da sua dor, que se tornará evidente na alegria do regresso. De forma muito simples, diz-se que ele dividiu a herança e deu ao filho mais novo os bens que lhe estavam, desde sempre, destinados. O pai aparece assim como homem rico e generoso, que pensa no bem dos seus filhos e coloca à disposição deles o seu património. Não é um pai possessivo nem impositivo. Ama, mesmo que seja incompreendido, mas deixa livre, sem deixar de amar: o oposto dos crimes passionais, da violência familiar, do conceito do amor-posse, amor-domínio.

O resultado do afastamento do pai é que o filho fica reduzido a si mesmo, à própria incapacidade de pensar e orientar a vida, deixando-se guiar por emoções e afetos imediatos, que parecem conduzir à felicidade, mas que acabam na frustração, na perda da dignidade e no risco da própria vida. A casa do pai, não era afinal limitação. Bem pelo contrário, era o local do afeto, da dignidade, do amor. A sua saída não representou independência, mas alienação e sujeição.

Além disso, o pai é o fundamento do relacionamento entre irmãos. Falando com o pai, o irmão mais velho refere-se, em seguida, ao mais novo como “esse teu filho” e não já como seu irmão. A eliminação do pai acaba por criar um abismo entre os irmãos. O pai/mãe representa uma estância superior (transcendente, no caso de Deus) que fundamenta a relação fraterna. Não se trata simplesmente de uma noção de autoridade inquestionável, mas de uma referência afetiva e antropológica, de um sentido de história e de cultura, que situa no espaço-tempo as pessoas e a sociedade. Esse é o papel da família, da verdadeira autoridade e dos princípios que regem a sociedade, da fé que faz levantar os olhos para o pai comum de todos e edificar a casa comum da humanidade, para além dos interesses individuais e das visões e opiniões de cada pessoa.

Com a pretensão de criar um homem novo, moderno e livre, muitos sistemas revolucionários tentaram cortar as raízes do passado, retirando os filhos aos pais e chegando mesmo a destruir os registos municipais, as manifestações de cultura popular e qualquer manifestação religiosa. O resultado foi catastrófico. O que se criou foi uma sociedade de órfãos, mas não de irmãos, onde vigorava a obediência a estados totalitários, onde a real solidariedade foi desaparecendo. Aqueles que falam da abolição de Deus em nome da liberdade e autonomia do homem, acabam normalmente por produzir obediências ideológicas e opressões totalitárias, onde a dignidade e liberdade das pessoas fica radicalmente comprometida.

Por outro lado, a imagem de um Deus totalitário e impositivo, um Deus simplesmente de recompensas e castigos, um Deus que não permite o sonho, por vezes iludido dos filhos, contradiz radicalmente a imagem que a parábola dele nos transmite. O Pai que Jesus conhece e revela é um Deus que promove o crescimento, a autonomia e a liberdade dos seus filhos/as, mesmo à custa de vê-los errar, afastar-se e até pôr em risco a própria vida. O pai sabe que os filhos são limitados, mas que devem fazer, assim mesmo, a sua vida.

Muitas vezes nos perguntamos porque é que Deus permite este tipo de liberdades; porque deixa partir o filho e lhe dá os meios para fazê-lo. Para além do que disse acima, parece-me que há uma razão fundamental. Tudo é uma questão de amor. Se os filhos não entendem o amor, nenhuma medida de coação manterá unida a família. Ora, o amor não se pode decretar ou comandar. Se eu tiver saber e meios, posso obrigar uma pessoa a fazer tudo, a lamber-me, inclusivamente, os pés. Mas seria ridículo dizer, em tom de comando, “ama-me!” O amor não se comanda nem se impõe; só se pode oferecer e declarar – “eu amo-te” – e esperar que, do outro lado ecoe algo como “eu também te amo”. O problema do bem não pode ficar-se pelas leis, sempre externas; é uma questão de coração, de amor. Apenas no húmus fecundo da liberdade e dignidade pode desabrochar. A parábola mostra que, na perspetiva do Pai do céu, a liberdade e o amor valem bem os riscos que se correm para conquistá-los, acompanhá-los e mantê-los.

Isso explica o silêncio paciente do pai. O filho tem de ser livre; tem de ter tempo para entender e dizer – se alguma vez o disser – “Eu amo-te”. A parábola começa, pois, por revelar o amor paciente de Deus que cria pessoas para a liberdade, a responsabilidade, a dignidade e a felicidade. Não se preocupa que tomemos em nossa mão o seu património. Espera mesmo que o façamos e que, ao longo da viagem da nossa autonomia, criatividade e desilusões frustrantes, nos fique, ao menos, a recordação do pai, da sua liberalidade e do seu amor. É o maior património e a melhor memória que nos deixa, para que acompanhe a nossa vida de filhas e filhos livres e amados.

3. O caminho do regresso

Na sua viagem de sonho ilusório, o fugitivo da casa paterna foi ao encontro da desilusão, da frustração e da experiência da própria fragilidade e dependência. Mas levou também consigo algo de precioso: a memória da vida na casa do pai e sobretudo aquilo que constituía o centro do “livro de instruções”: o amor do pai. Na realidade, a parábola só indiretamente faz referência à recordação do amor do pai por parte do filho. O que diz é que ele, na situação de penúria em que se veio a encontrar, se recordou da abundância da casa paterna e pensou voltar e pedir para ser admitido como um dos servos, pois não merecia ser tratado como filho. Esta declaração mostra que reconhece o erro cometido, a dor causada ao pai e, pelo menos até certo ponto, que tem confiança na sua bondade para aceitá-lo de volta.

É este filho que o pai vê vir ao longe. Não sabe o que se passou, que ideias ou propósitos terá. Apenas sabe que este é o seu filho que está de volta e isso é o motivo de tanta alegria, de tantos beijos e abraços, depois da acutilante saudade, de tanta dor e ansiedade. Uma alegria que compensa e cobre toda a tristeza, saudade e cuidados da ausência, de tal modo que nem deixa que o filho profira a confissão que preparara, e torna desnecessária a expressão formal do perdão. Além disso, o estado miserável em que encontra o filho põe em movimento todo o afeto do pai e os préstimos dos servos da sua casa, para restituir beleza, bem-estar e dignidade ao retornado, antes de se começar a festa do seu regresso. Este é o coração paradoxal do pai; estas são manifestações tão exageradas que só o amor explica. Mas são, diz Jesus, a imagem da alegria do coração do Pai do céu, por cada filho/a que regressa a casa.

Para Deus, este filho leviano, ingénuo, sonhador, malévolo ou egoísta, que põe em causa a sua vida e o bem-estar da própria família, da Igreja, da sociedade, somos todos nós, cada um de nós. Todos estávamos longe, como seres humanos frágeis limitados e pecadores; todos fomos admitidos e integrados na família deste Pai e destes irmãos e irmãs. É a experiência desta misericórdia radical de Deus que torna possível a vida pessoal e da convivência entre humanos que continuamos a ser. Esse é o grande desafio da segunda parte da parábola.

 

4. Reconstruir a família

A parábola parecia terminar com o regresso do filho e o começo da festa. Seria uma história comovente com um fim feliz. Mas Jesus abre, imediatamente, a uma segunda parte da narração, pondo em foco o filho mais velho, que tinha ficado em casa do pai. Ao saber do regresso do irmão e da festa que o pai tinha preparado, este filho justo, obediente e bem-pensante não pode esconder a sua fúria. A atitude do pai não tem lógica nem justiça, e parece uma afronta aos que se comportam bem. Além disso, tratar com tanta alegria e liberalidade o irmão estouvado, é uma atitude pedagogicamente desaconselhável, que pode levar outros jovens a comportarem-se assim, sem pensarem nas consequências dos seus atos. Por sua parte, ele já deixou de considerar o mais novo como membro da família. Menciona-o como “esse teu filho”, destacando-se assim, ele próprio, tanto do irmão como do próprio pai e da família: “não queria entrar”.

A aparente justeza da frustração do filho mais velho não deixa indiferente o pai, que sente que lhe deve dar atenção e falar ao coração. Tenta fazê-lo entrar – “o pai, saindo, suplicava-lhe que entrasse” – não apenas na casa e na festa, mas na lógica do seu coração e da família. Faz-lhe ver que o património todo da casa paterna é um dom (não um direito), tanto para o irmão como para ele. Além disso, sem a sua participação de irmão mais velho, esta família não está completa nem o coração do pai pode conhecer descanso. O perdão do pai/mãe é o princípio e a fonte da união e amor de todos, mas não se refaz a família se os irmãos não se entendem, não se acolhem, não se reconciliam e não celebram o regresso do irmão leviano.

Esta segunda parte da parábola abre o jogo a cada um de nós, a cada família e a toda a Igreja. A aparente justiça do filho mais velho é tão nociva para a família, como a leviandade do irmão mais novo. Se é verdade que este último não entendeu o coração do pai, também o mais velho está longe da sua atitude gratuita e misericordiosa. Ao contar esta parábola, Jesus sabia bem que estava a encontrar muito mais dificuldades e resistências da parte dos que se consideravam justos e se agarravam aos próprios méritos e direitos, do que da parte dos pecadores, que estavam a entender melhor o seu papel de portador da misericórdia e o carinho de Deus.

Dividir simplisticamente a sociedade entre justos e pecadores e excluir estes últimos – eliminá-los, fechá-los em cadeias, sem outras perspetivas – é destruir as bases da solidariedade e renunciar a criar uma sociedade melhor. Se se aplicar a lei de talião, todos andaremos de cabeça partida, ou eliminar-nos-emos mutuamente, pois, sendo todos falíveis e pecadores, todos damos razão, a alguém e a Deus, para nos acusarem e punirem. Isto para não mencionar o facto de serem sempre aqueles que detêm o poder, os que fazem as leis pelas quais julgam os mais pobres e frágeis. A eliminação do Pai não nos deixa mais irmãos. Em lugar do Pai, em nome da democracia, muito frequentemente entram os tiranos e oportunistas. Em nome desses critérios é que Jesus foi juridicamente condenado, em nome de Deus e em nome do império, pelas autoridades legitimamente constituídas. Antes, foi julgado na mente e no coração das cabeças bem-pensantes instituídas em poder. Esses estão bem representados pelo irmão mais velho da parábola, que acha que quem erra tem de pagar até ao último centavo.

O que Jesus vem propor é que assumamos uma atitude diferente: que ponhamos a funcionar a inteligência do coração, o afeto e a misericórdia que levam ao perdão, à reconciliação e à renovação da vida e do tecido social. Ele deseja que esta atitude esteja presente em cada família, em cada grupo e sobretudo na sua comunidade, a Igreja. Os discípulos que colocou à frente da sua comunidade fizeram bem a experiência do perdão e da reconciliação. Todos estavam ou passaram por uma profunda situação de separação, de infidelidade, de traição ao Mestre. Foi ele que os resgatou, reconciliou e reabilitou. Ele, o único justo, atraiçoado e abandonado pelos discípulos, insultado e condenado inocente, uma vez ressuscitado, não teve a ambição de vingar-se, de pedir justiça contra ninguém ou de invocar a maldição de Deus. Pelo contrário, na sua primeira aparição aos discípulos, infundiu sobre eles o seu Espírito e enviou-os como promotores de reconciliação com Deus e entre os homens (cf. Jo 20,21-23). Esta é a vingança e a justiça de Deus: o dom do Espírito reconciliador.

 

5. Uma Igreja reconciliada e reconciliadora

Esta é a missão fundamental da Igreja: reunir na família do Pai os irmãos e irmãs que andam dispersos, perdidos, iludidos, feridos, abandonados e sem dignidade. Uma Igreja que se entende a si mesma como comunidade de gente reconciliada gratuitamente por Deus, que fez a experiência pessoal de se sentir amada e perdoada, apesar da sua situação de pecadora, perseguidora, corrupta, infiel. Por isso, é gente que se tornou compreensiva e misericordiosa para com os outros.

O primeiro fruto desta parábola é conhecer assim o Coração de Deus, Pai misericordioso, benevolente e eternamente fiel; o sentir-se pessoalmente, amado, perdoado e reconciliado. Sentir-se filho/a que o Pai encoraja e em quem sempre confia, apesar de conhecer a sua fraqueza e instabilidade. Foi o Coração do Pai, manifestado nos gestos concretos de Jesus, que mudou para sempre a vida dos discípulos, de Maria Madalena, de Zaqueu… e fez deles anunciadores e operadores de misericórdia e de paz. A cada um/a de nós se dirige particularmente a primeira parte da parábola. Somos individualmente esse Filho iludido e egoísta, que aprendeu a conhecer o coração do Pai, quando foi acolhido de coração aberto e misericordioso.

A nós se dirige também a segunda parte da parábola, no convite dirigido ao irmão mais velho, para que, como o Pai, abra o coração ao irmão que se afastou, o acolha de regresso e o reintegre festivamente na família. É assim que nasce a Igreja e este é o núcleo central da sua missão, como bem entendeu S. Paulo:

“Foi Deus quem reconciliou o mundo consigo, em Cristo, não imputando aos homens os seus pecados, e pondo em nós a palavra da reconciliação. É em nome de Cristo, portanto, que exercemos as funções de embaixadores e é Deus quem, por nosso intermédio, vos exorta. Em nome de Cristo vos suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus” (2Co 5,19-21).

É com esta convicção que o Papa Francisco apela a uma Igreja de portas abertas, uma Igreja na qual se sinta o odor da misericórdia para com os que caem, que erram e se afastam; uma Igreja que nunca exclui ninguém. Sem negar ou escamotear a seriedade do Evangelho e sem meias-palavras para com os comportamentos que o contradizem, Francisco nega-se a julgar e a condenar aqueles que assumem essas atitudes. Por exemplo, insiste que aqueles que sentem a dor e a frustração de um matrimónio fracassado, não podem ser deixados à porta da Igreja, mas devem sentir o seu carinho materno e o acolhimento dos irmãos; que o respeito e proximidade dos que têm comportamentos desviantes não significa a aprovação do seu modo de vida, mas oferta de acolhimento fraterna do amor reconciliador do Pai.

Sentindo-se sempre pecadora e imperfeita, a comunidade dos que seguem Jesus é constantemente movida pela misericórdia de Deus que a reconcilia e a recria. É assim em cada matrimónio e em cada família, em cada paróquia e movimento, em cada diocese e na Igreja inteira. O jubileu da misericórdia há de servir para mudar a nossa mente e o nosso coração sobre a maneira de entender Deus e a Igreja, para que, a partir dos nossos próprios comportamentos, sejamos todos “embaixadores da reconciliação” em todas as situações degradadas do mundo.

Particular importância assume, neste ano jubilar, a celebração do sacramento da reconciliação. Através dele se manifesta, de modo muito especial, a atitude acolhedora e a alegria do Pai pelo aproximar-se de cada filho/a que reencontra a casa, a dignidade, a energia e a esperança. Trata-se de um encontro pessoal com Deus, que se realiza na comunidade, através de um irmão que age em seu nome e como servidor do amor de Deus. O seu caráter pessoal conjuga-se, pois, com a dimensão comunitária, que está sempre presente a recordar a missão de todos no caminho fundamental da reconciliação com Deus e entre os irmãos.

É muito importante que aqueles a quem se confia esta missão fundamental sejam pessoas profundamente tocadas pela misericórdia de Deus e pelo exemplo do Senhor Jesus, no seu íntimo e nas suas atitudes, para que não contradigam com o seu modo de agir o tesouro de ternura e acolhimento que levam consigo. Não foram enviados como juízes (como este também não é “o tribunal da penitência”), mas como portadores de misericórdia e de bênção. Não vão em próprio nome, mas em nome de Deus e inseridos numa comunidade eclesial que lhes confia este ministério fundamental. Devem, por isso, procurar transmitir este mesmo carinho na forma de acolher os irmãos/ãs que os procuram.

É importante, além disso, que entendamos, todos, este sacramento à luz da parábola de hoje. A reconciliação não é um serviço de lavar roupa nem uma amnistia, onde se vai expor as manchas ou os débitos, para serem cancelados, por ação de um detergente ou anulador misterioso e poderoso (ou a tecla “delete”). É o (re)encontro com o Pai e com os irmãos, dos quais nos afastámos, que ofendemos e lesámos mais ou menos seriamente. É o reconhecer o mal que fizemos a nós mesmos e, por via disso, o escândalo para outros e a omissão do bem que não fizemos.

O reencontro sacramental com a misericórdia e o coração do Pai, tem, sim, uma dimensão em relação ao passado, mas não como uma amnistia de tipo judicial que anule o passado, pois o passado não se pode mudar. O que diz é que Deus declara que não olha mais para o que passou, que abre para nós uma nova página, sem recriminações, que a alegria de voltarmos O compensa largamente das penas que lhe causámos, que a vida está adiante para ser reconstruída e vivida. Aí é que se situa a força do sacramento. Entendendo/acolhendo o Espírito do Senhor e o amor que Ele gera, partimos com coração novo e nova esperança para a vida. A reconciliação é refazer a vida com Deus e com os outros, de um modo novo.

Assim se entende que Jesus diga: “Se não perdoardes aos homens as suas ofensas, também o vosso Pai do céu não perdoará as vossas” (Mt 6,14s). À primeira vista, dá a impressão que voltamos à imagem do Deus vingativo que nos recompensa ou perdoa, segundo a medida dos nossos próprios comportamentos. O que esta expressão de Jesus nos diz é outra coisa, que se poderia exprimir assim: Se não perdoardes, significa que não encontrastes o coração misericordioso do Pai. Estais ainda no vosso pecado e ligados aos sentimentos de ódio, divisão e revanchismo que vos tiram a saúde corporal e espiritual e destroem os vossos relacionamentos. Praticastes um rito, mas não mudastes o coração. Deus não perdoa (não liberta), não significa que Ele vos fechou o coração. Significa é que vós não Lhe abristes o vosso e, por isso, continuais enleados na trama das emoções que vos asfixiam, ao passo que o encontro verdadeiro com Deus vos libertaria (perdoaria/recriaria).

Um dia, na confissão, um senhor ajoelhou-se e disse-me mais ou menos assim “Senhor padre, ajude-me porque estou em dificuldade para me confessar. É que eu quero perdoar, mas não consigo esquecer. Eu tinha semeado abóboras na minha horta. Quando as plantas estavam já cresciditas, alguém, que me quer mal, foi lá e pisou tudo, dando cabo das abóboras. Este ano, ficámos sem abóboras, porque já era tarde para plantar outras. Eu quase adoeci, pensando nas abóboras. Os vizinhos, sabendo disto, vão oferecendo das abóboras deles, mas eu, de raiva, não as consigo comer e já disse à minha mulher que não cozesse mais abóboras. Vou ao mercado e, se vejo abóboras saio, esquecendo o que ia comprar… A verdade é que, só o pensar em abóboras me faz subir a tensão arterial”. No nosso diálogo, entre outras coisas, eu disse-lhe: “Acha que vale a pena? Você já perdeu as abóboras por causa da malvadez de alguém; vale a pena perder também a saúde por causa disso?”.

Nesse dia, penso que entendi um pouco mais o quê, e porquê Deus não pode perdoar, se não perdoamos. É que o perdão não é uma anulação do passado, mas a construção do futuro através do encontro com a misericórdia de Deus que nos dá o seu Espírito. Deus perdoa sempre, espera sempre o filho, mas só pode agir quando ele se abre ao seu carinho, à sua força e aceita reintegrar-se na família. O perdão é colocar-nos, com coração novo, no caminho certo, a pensar e agir, de acordo com a misericórdia que recebemos de Deus. É refazer os laços quebrados e a justiça infringida, dar a atenção e o carinho esquecidos, abrir-se à generosidade e solidariedade, voltar aos braços do Pai, de onde se partira com ilusões redutoras e egoístas. Por outro lado, é necessário igualmente que os outros irmãos acolham, que abram o coração, que ajudem à reintegração e façam festa como o Pai, para ajudar a tratar as feridas do irmão e das suas debilidades e ilusões. É por isso que a Igreja é um “hospital de campanha”, como diz o Papa Francisco.

 

6. Recriar, Reparar, Reconciliar

A partir desta consciência é que nós, discípulos do Senhor Jesus, como pessoas e como Igreja, somos chamados a anunciar a Boa Nova do amor reconciliador de Deus a todo o mundo. Ele torna-nos sensíveis aos sistemas aparentemente justos, mas que são apenas a perpetuação da injustiça e da degradação. Para concluir, dou apenas dois exemplos de entre os muitos que se poderiam citar.

À luz desta palavra, percebemos a hipocrisia de uma justiça que se limita a julgar, executar ou meter na prisão aqueles que atentam contra a lei. Sem querer simplificar aquilo que é muito complexo, parece-me que o nosso atual sistema jurídico prisional deveria olhar, com atenção, para a lógica desta parábola. Se o tempo de reclusão fosse virado, acima de tudo, para a recuperação da dignidade e da autoestima das pessoas e das suas famílias, para reparar traumas e feridas e criar condições de recomeçar a vida; então esse tempo poderia realmente preparar um verdadeiro regresso a casa, para quem se deixou levar pela ilusão do roubo, da violência e da morte. Seria muito mais barato, mais humano e mais digno do que o sistema de “enjaulamento” atual que, na maior parte dos casos, leva a aumentar a frustração, a novos desacatos e novas prisões. Por isso o sistema está a abarrotar e sem soluções. Temos de escolher se optamos pelo perfil do irmão mais velho, senhor de uma moral autossuficiente, hipócrita e punitiva, ou pela lógica misericordiosa e reabilitadora do Pai.

O mesmo se passa com a questão do terrorismo, dos refugiados, das ideologias segregacionistas. É sempre questão daqueles que se consideram justos e protegidos e querem deixar fora quantos, por erro ou necessidade, vêm pôr em causa as suas prerrogativas e comodidades. Isto, sem mencionar que, muitos desses que se julgam com tanta razão e justiça têm uma grande responsabilidade na situação em que se encontram os desfavorecidos. A globalização veio mostrar que somos todos interdependentes e chamados a construir a casa comum da humanidade, a família humana. A solução não está no erguer de mais muros para deixar de fora os deserdados ou lançar mais bombas. Isso só faz aumentar o número dos miseráveis e o caminho seguro para destruir a sociedade, pois a multidão dos miseráveis vai aumentar a pressão e abater todos os muros de defesa, como já está acontecendo.

Estes são apenas dois campos dos nossos dias que devem de ser repensados neste ano da misericórdia. Mas cada um tem o seu pequeno ou grande mundo para reler ao sol acalentador do Pai da Misericórdia, bem patente nesta parábola. Que mundo queremos construir? O da comodidade e hipocrisia de poucos com a exclusão daqueles que, com ou sem culpa própria, se encontram na miséria? Essa é a lógica do irmão mais velho. Ou queremos lutar por um mundo de misericórdia, de fraternidade, de abertura do coração aos que erram, aos que são condenados e excluídos… e a nós próprios, para a construção de um mundo melhor?

Que o Pai da misericórdia permita que abramos o nosso coração ao seu, que está sempre aberto para nós, a fim de que possamos escutar com alegria a bem-aventurança de Jesus:

Bem-aventurados os misericordiosos, porque serão cobertos de misericórdia…

Bem-aventurados os obreiros da paz, porque serão chamados filhos de Deus (Mt 5,7.9)

 

 

 

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23 de Fevereiro de 2016