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D. José Ornelas

ivcatequese2016

Introdução

Continuamos as nossas reflexões de quaresma, tomando em consideração a atitude de Jesus que lava os pés aos seus discípulos. É um dos textos emblemáticos da mensagem evangélica que vem juntar-se aos ícones fundamentais da misericórdia de Deus, revelada na alegria do Pai que acolhe o filho que andava perdido e no olhar de compaixão do Samaritano Misericordioso, que meditámos nos domingos passados.

1. Para entender o texto

O texto que acabámos de proclamar constitui a introdução à narração da paixão de Jesus, no Evangelho de S. João. Aliás, esta narração do lava-pés é mesmo a introdução que revela o sentido – o porquê – da vida e da morte de Jesus. Para o evangelista João, tudo o que narrou até aqui, ao longo do Evangelho só se explica pelo amor de Jesus pelos seus: “Ele, que amara os seus que estavam no mundo, levou até ao extremo o seu amor para com eles”. Agora, chegada “a hora” de concluir a sua vida nesta terra e “de passar para o Pai”, é o tempo de manifestar a totalidade do amor, pelo dom total da sua vida. A paixão e morte de Jesus significa a expressão máxima do amor, como Ele próprio afirma: “Não há maior prova de amor do que dar a vida por aqueles que se ama” (Jo 15,13). O ato de lavar os pés aos discípulos é, pois, um gesto que exprime o sentido da vida e morte de Jesus.

Lavar os pés a alguém, tornou-se pouco usual nos nossos dias. Mas na antiguidade e nas culturas rurais, até hoje, tal não era raro, pois as pessoas andavam normalmente descalças ou usavam sandálias. Ao chegar a casa, não disponham de água para um banho completo, mas era muito agradável lavar os pés da poeira e refresca-los com a água. Era um gesto que se podia pedir a um servo ou que qualquer pessoa podia fazer por afeto e respeito. O anfitrião podia lavar os pés a um hóspede ilustre, o filho aos seus pais ou o discípulo ao mestre. Isto para não falar do serviço diário da mãe que lavava os pés aos filhos pequenos antes de os colocar na cama. Mas não se concebia que um personagem de relevo se humilhasse a lavar os pés a um inferior. Aos mestres da Lei, estava mesmo vedado lavar os pés a alguém, mesmo ao próprio pai. Lavar os pés é, pois, um gesto de serviço, que reconhece a superioridade daquele a quem se lava os pés. Ou então, é expressão de um grande afeto e respeito.

Na perspetiva do evangelista João, este gesto é realizado na véspera da paixão e Jesus tem consciência de que está a passar os últimos dias com os discípulos. Constitui, pois, juntamente com o longo discurso que se segue, uma espécie de testamento, de legado para os seus, um resumo daquilo que considera fundamental para o futuro dos discípulos. Neste contexto, a lavagem dos pés representa a revelação da atitude de vida de Jesus, do pulsar do seu Coração.

Há ainda um outro aspeto que merece particular atenção: o evangelista João, não narra a instituição da eucaristia, na última ceia de Jesus. Não é que a desconheça, pois ele tem um longo discurso sobre o pão da vida (cf. Jo 6), onde está bem presente a tradição eucarística das primeiras comunidades cristãs. Em lugar de narrar a instituição da Eucaristia, como os outros evangelhos, ele inclui esta narração da lavagem dos pés, como interpretação da vida e morte de Jesus, por amor. Esse é também o sentido último da Eucaristia. Isto significa que, como a Eucaristia, o gesto da lavagem dos pés é apresentado como o um mandato de Jesus, não especificamente como um rito, mas como uma atitude de vida de serviço e amor, que deve ser perpetuada nas comunidades cristãs. Nas tradições da eucaristia, Jesus, depois de ter declarado que o pão e o vinho que oferece é o seu corpo e o seu sangue, diz aos discípulos: “Fazei isto em memória de mim” (1Co 11,24). Este mandato soa, de uma forma semelhante, no contexto da lavagem dos pés: “Dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também” (Jo 13,15). Aquilo, pois, que Jesus deixa como último legado aos discípulos é que continuem a multiplicar os seus gestos de serviço e de carinho. Não se trata simplesmente de realizar um rito litúrgico – que tem o seu pleno lugar – mas de transformar a vida com atitudes concretas como as de Jesus para com os seus discípulos.

 

2. Quando o amor se torna serviço

Lavando os pés aos discípulos, Jesus sublinha gestualmente as duas dimensões de serviço e amor, implícitas neste ato. Diz o texto, que Ele se levantou da mesa, “depôs o manto e tomando uma toalha, atou-a à cintura…” para o serviço, como usavam os servos. O significado do gesto é muito simples e transparente. É como se Jesus dissesse: Foi assim que eu vos tratei. Ao longo deste tempo passado convosco, coloquei-me ao vosso serviço, com amor e carinho. Toda a minha energia, capacidades, o meu tempo e os meus projetos foram colocados ao vosso serviço. E a minha morte iminente será o coroamento desse serviço e desse amor. Não será simplesmente um acontecimento trágico e cruel, pois no meio de toda essa escura maldade, revela-se a maravilha luminosa do amor indesmentível e fiel do Pai.

Esta revelação da atitude de Jesus adquire um significado especial tendo em conta, como diz S. João, que Jesus está consciente da traição de Judas, da próxima negação de Pedro, da debandada dos restantes discípulos. Apenas João, o discípulo amado, acompanhará o Mestre até à cruz. É a este grupo, que não é por nada perfeito e cujos protestos de fidelidade e solidariedade não oferecem consistência, que Jesus lava os pés e oferece o melhor de si mesmo: o seu serviço de amor e carinho. Aqui, o serviço-amor manifesta-se como a mais fina misericórdia para com os discípulos que se encontram em grave perigo. É assim o amor de Deus revelado em Jesus: sempre se oferece gratuitamente, sempre espera, mesmo quando, da parte dos discípulos, não há uma resposta à altura. Diante do homem pecador e débil, arrogante e incapaz de manter as próprias promessas, é onde se manifesta, de modo incrivelmente sublime o amor de Jesus, como serviço, até ao dom da própria vida.

Pedro compreende a estranha situação e interpreta-a somente à luz dos seus critérios. Por isso protesta: “Tu nunca me lavarás os pés”. Para ele, a atitude de Jesus representa uma humilhação indigna do seu Mestre. Na sua cabeça, a grandeza está ligada à ideia de ser servido, obedecido, por aqueles que se devem considerar seus súbditos. Assim se mantém a pirâmide da autoridade, em que os grandes estão no topo e dominam sobre os que estão em baixo. Pedro e os outros discípulos têm ainda de aprender muito sobre a grandeza do amor de Deus que Jesus lhes oferece. Decisiva para essa compreensão é precisamente esta atitude do Mestre, lida à luz da sua morte e ressurreição. Hão de entender que Jesus se colocou de joelhos diante deles, para lhes lavar os pés, não porque eles fossem discípulos perfeitos e fiéis, mas precisamente quando estavam para traí-lo, negá-lo e abandoná-lo.

O gesto de Jesus inverte a pirâmide da importância e da grandeza: “Compreendeis o que vos fiz? Vós chamais-me ‘o Mestre’ e ‘o Senhor’, e dizeis bem, porque o sou. Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros”. A grandeza, aos olhos de Jesus não está em sentar-se sobre os outros, em dominá-los ou colocá-los ao seu serviço, mas, pelo contrário, em colocar-se Ele ao serviço deles. O que fazem os pais em casa? São os primeiros a levantar-se, para preparar o pequeno almoço e preparar as coisas para os filhos… são os últimos a ir para a cama, para deixar ainda tudo pronto para o dia seguinte. São escravos? Não! Amam!… e o seu amor transforma-se em serviço concreto e diário para o bem de todos. Esta é a expressão da estima e do carinho que cria a família e faz crescer os filhos como pessoas saudáveis e, por sua vez, capazes de servir com amor. O serviço – e não o poder, o domínio e a prepotência – é que forma pessoas, famílias, comunidades e povos solidários e prósperos e – o que é ainda mais importante – capazes de amar e de servir com amor.

Este serviço, que faz e propões Jesus, deve ser bem entendido. Não se trata de um serviço de escravos, pois Ele não gosta de ver ninguém escravizado! Há situações em que estar de joelhos é sinal de sofrimento, de humilhação, de perda de dignidade. E há um ajoelhar que é elevação, alegria e dignificação, mesmo que seja com esforço e dor. Nesta última categoria aparecem, em primeiro lugar, o ajoelhar diante de Deus e o ajoelhar diante do irmão para lavar-lhe os pés, como gesto de serviço e de afeto. Ajoelhar assim não humilha, não tira dignidade, não escraviza, mas mostra sabedoria do coração, alegria, liberdade criadora… uma liberdade que é capaz de se fazer serva por amor e com misericórdia. Foi desse modo que Jesus se ajoelhou diante dos discípulos e lhes lavou os pés.

 

3. Participantes ativos na comunidade

A primeira coisa que há que compreender neste gesto de Jesus é a atitude ativa e relacional com os discípulos. Jesus entende-se a si mesmo e o seu ser Mestre como um “ser para”, “ser em favor” dos discípulos. Esta é a primeira atitude que quer que eles entendam e assumam também. No grupo dos seus seguidores, não pode haver ninguém parado, puro observador ou destinatário das atenções e préstimos dos outros. Todos devem ser ativos e participantes, assumindo uma atitude de serviço. A comunidade de Jesus não é um supermercado em que uns produzem religião, que os outros consomem, ou uma empresa de serviços religiosos gerida por alguns, onde os outros vão “fornecer-se”. Todos oferecem os seus serviços, de acordo com os dons que receberam e, por isso, todos são também beneficiários do contributo dos outros, segundo o papel diversificado de cada um.

O primeiro passo para operar a mudança de mentalidade é ultrapassar a apatia e a indiferença. Hoje, expande-se esta atitude prática de se fechar em si mesmo, ou no círculo estreito da própria família ou grupo, cercando-se de um muro impermeável ao que se passa à volta. Não são pessoas más, mas também não se comprometem com nada. Por vezes encontram-se desiludidas por se terem comprometido no passado e terem sido incompreendidas; outras vezes entendem assim protestar contra a incoerência dos que estão no poder, ou não querem simplesmente sair da própria comodidade.

Implicar-se para servir começa pela atitude do samaritano, que refletimos na semana passada: “viu, encheu-se de misericórdia e aproximou-se”, ou pela atitude de Jesus perante a multidão faminta e desorientada: “Ao desembarcar, viu uma grande multidão e sentiu compaixão porque eram como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34). É com esta atitude de sensibilidade ativa que Jesus se levanta da mesa, depõe a veste de cerimónia e toma o avental do serviço, para lavar os pés aos discípulos. Estes, como também nós fomos beneficiados por este serviço do Mestre e aprendemos o seu modo de agir. Por isso, o Evangelho leva-nos a dizer a nós próprios: os problemas da minha família, da minha comunidade, da diocese, da Igreja, do mundo, da miséria, da fome, da droga da corrupção, são assunto meu. Não posso fingir que não conheço, que não sinto. Não posso ficar comodamente sentado à mesa, deixando aos outros a tarefa de se preocuparem com o serviço de todos e especialmente com os que não têm mesa e nada para lhe pôr em cima.

E não vale desculpar-se com os erros e o mau comportamento dos outros. Se temos uma Igreja imperfeita, com padres, bispos e outros líderes, por vezes, indignos; se temos um país enfermo de erros de governação, de escândalos de corrupção… então temos uma razão mais para intervir, para colaborar na busca de soluções. Não podemos ser gente que fica a ver passar as procissões. Queremos estar nesse cortejo, com a nossa presença ativa, as nossas ideias, a nossa voz solidária. Não podemos esperar que o mundo, a comunidade, a família… sejam perfeitos para colaborar. É precisamente porque, à nossa volta há um mundo partido, ferido de imperfeição, de divisão, de miséria e dor que faz falta o nosso olhar ativamente misericordioso, a nossa atitude ativa de proximidade e compromisso.

 

3. Na comunidade de Jesus: serviço ou poder?

O gesto de Jesus ao lavar os pés aos discípulos não aparece isolado nos evangelhos. Bem pelo contrário, as questões de poder, riqueza e grandeza, bem como as alternativas de serviço, pobreza e pequenez constituem um dos temas fundamentais do Evangelho e da tradição bíblica. Maria canta como Deus “dispersa os soberbos e depõe os poderosos dos seus tronos, mas exalta os humildes. Enche de bens os famintos e manda embora os ricos de mãos vazias” (Lc 1,51,53). E ela própria se diz ditosa porque Deus olhou para a sua pequenez e nela realizou maravilhas. Jesus, por seu lado, proclama bem alto “bem-aventurados os que, a partir do seu coração são pobres”, recusa liminarmente o uso da força para instaurar o Reino de Deus e diz abertamente que “o Filho do Homem não veio para ser servido mas para servir e dar a vida pela multidão” (Mc 10,45). O discurso de Jesus sobre poder e serviço, sobre riqueza e partilha, sobre grandeza e pequenez encontra-se, aliás, na base da revolução que ele pretende realizar no mundo, a partir da sua comunidade.

A primeira pedra desta revolução está precisamente naquilo que refletimos há dois domingos sobre o amor universal de Deus, Pai comum de todos os homens e mulheres sobre a terra. Aceitar Deus como Pai, faz-nos todos irmãos e irmãs. A primeira imagem da nova humanidade, a sua família, é constituída por aqueles que, sentados à sua volta, escutam a Palavra de Deus: “Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3,35). No interior da comunidade de Jesus, nenhum papel, nenhuma função de responsabilidade ou de liderança se pode sobrepor a este conceito fundamental de sermos irmãos/ãs, filhos/as do mesmo Pai, renascidos pelo dom do seu Espírito, sentados à volta do único Mestre, que é o Senhor Jesus. Os papéis e funções, dentro da Igreja, não estabelecem distinções de dignidade, de grandeza ou de privilégio, mas são serviços para a construção da comunidade. Por isso, diz Jesus, com a força das imagens que costuma usar: “Não vos deixeis tratar por ‘mestres’, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos. E, na terra, a ninguém chameis ‘Pai’, porque um só é o vosso ‘Pai’: aquele que está no Céu. Nem permitais que vos tratem por ‘doutores’, porque um só é o vosso ‘Doutor’: Cristo. O maior de entre vós será o vosso servo. Quem se exaltar será humilhado e quem se humilhar será exaltado” (Mt 23,8-11).

À luz deste “ser irmão/ã” se entende que os papéis dentro da família/comunidade são serviços para o bem de todos e não uma conquista de poder ou de promoção pessoal. A comunidade terá sempre necessidade de anunciadores da Palavra, de catequistas, de coordenadores, de líderes que a orientem e conduzam, de gestores de bens e de encarregados de tantos outros serviços, nas comunidades e nas instituições a elas ligadas. É importante que todas estas pessoas tenham bem presente a atitude de serviço de Jesus no desempenho das suas funções. De contrário, correm o risco de perverter o sentido daquilo a que foram chamadas, de transformar o seu contributo em luta pelo poder e domínio sobre os outros, causando lutas e invejas e destruindo o espírito de fraternidade e de solidariedade.

Este projeto de Jesus pretende superar a lei da selva que reina no tecido social. Esse dinamismo de afirmação cega coloca como prioridade e exclusividade o interesse pessoal ou de um grupo acima do dom gratuito e dos interesses comuns. Essa é a mentalidade da seleção das espécies, que vai sempre descartando os elementos menos eficientes. Foi assim ao longo de milhões de anos. A lei é a luta, onde prevalecem os mais fortes; os outros são ignorados ou eliminados. Essa é a lei da selva na economia do lucro que empobrece o mundo, na conquista do poder a qualquer preço, na imposição da vontade de minorias privilegiadas a populações inteiras desfavorecidas, na proliferação da corrupção e apropriação dos bens que deveriam estar ao serviço de todos… Não nos iludamos, esses não são caminhos de sucesso, mas a via aberta ao desperdício, ao confronto, à guerra. Sem uma mentalidade solidariedade e de serviço, a família, os grupos e a sociedade caminham para a desagregação e a autodestruição.

A mudança de mentalidade é fundamental para entender e acolher o Evangelho. Tenho de decidir se o meu relacionamento com os que me rodeiam vai ser marcado pela ideia de aproveitar deles e fazer-me servir por eles ou se me considero eu ao serviço deles, criando um relacionamento novo, não baseado no conflito, na imposição e na exploração, mas na gratuidade, na solidariedade e na partilha. No centro do Evangelho de Marcos (Mc 8,27-10,45), encontra-se uma secção inteira consagrada a estas questões, no interior da comunidade dos discípulos de Jesus. De uma forma pedagógica, o evangelista coloca em paralelo a atitude de Jesus e os sonhos de glória pessoal dos discípulos. Jesus anuncia-lhes, por três vezes, que vão a caminha de Jerusalém, onde Ele vai consumar o seu serviço com o dom da própria vida. Os discípulos, porém, ao longo do mesmo caminho, fazem um percurso diferente: alimentam sonhos de grandeza pessoal e domínio, que geram discórdias entre eles e pretendem afastar os mais fracos. Vejamos apenas alguns destes episódios, que mostram o contraste dos dois modelos de comunidade e de sociedade que estão em confronto.

No primeiro e fundamental anúncio da sua morte e ressurreição (Mc 8,31-9,1), é Pedro que, em nome dos colegas, todos imbuídos de uma mentalidade messiânica de luta e de violência para instalar o Reino de Deus sobre a terra, rejeita a ideia de um messias sofredor, que paga com a vida a sua revolução, porque não quer destruir ninguém. Em resposta, Jesus chama Satanás a Pedro e recusa decididamente a sugestão de um messianismo triunfante e violento, que contradiz, em absoluto, o amor misericordioso e universal de Deus. A violência é a atitude diabólica por excelência, é o que mais se opõe à nova humanidade proposta pelo Evangelho. E, no entanto, ao longo da história da Igreja, quantas páginas tristes deste género: “guerras santas”, cruzadas contra os infiéis, guerras entre cristãos, inquisição… A verdade e o amor não se impõem desse modo. Pelo contrário, no momento em que uma proposta de fé toma esse caminho, nega a sua validade e opõe-se frontalmente à atitude de serviço e de misericórdia assumida por Jesus.

O segundo anúncio do caminho do serviço e do dom da vida vem ao encontro dos discípulos que discutem entre si sobre quem será o maior, tentando recuperar a ideia da pirâmide da importância e distinção social, onde, naturalmente eles esperam estar no topo (Mc 9,30-50). Jesus tinha-lhes proposto que mudassem essa imagem pela do círculo fraterno daqueles que se reúnem à sua volta (Mc 3,35), para escutar a palavra do Pai, mas eles continuam ligados ao esquema da escada da autoridade e dos privilégios. Agora, o Mestre corrige o sonho de grandeza pessoal e autoritária dos discípulos, colocando no meio deles uma criança, abraçando-a, identificando-se com ela e dizendo que o serviço a Deus se identifica com o serviço aos mais pequenos: “Quem receberam um destes pequeninos em meu nome, é a mim que recebe e quem me recebe, recebe o Pai que me enviou” (Mc 9,37).

Desta atitude de grandeza pessoal, que já divide o grupo dos discípulos, surgem outras igualmente destruidoras: os discípulos pretendem impedir alguém de fazer o bem, “porque não nos segue” (Mc 9,38), o que mostra uma pretensão de imposição “dogmático-despótica”, de quem se apropria dos dons de Deus e pretende tudo controlar. Jesus contrapõe um caminho de convergência tendo como ponto comum o serviço aos necessitados, pois Deus não limita a sua ação a este grupo de discípulos: “Não o impeçais… quem não é contra nós é a nosso favor” (Mc 9,40). Mais adiante, os discípulos tentam impedir os pequenos de se aproximarem de Jesus. Ele repreende-os com a mesma veemência que usa para expulsar os demónios e declara solenemente que quem abusar e escandalizar um desses mais pequenos, mais valia que fosse lançado ao mar com uma pedra ao pescoço (Mc 9,42ss).

O terceiro anúncio depara com um grupo ou clã que procura conquistar o poder: os irmãos João e Tiago pedem para se sentarem à direita e à esquerda de Jesus, o que leva os outros a protestar e se rebelar, gerando azedas disputas e divisão (Mc 10,35-45). Jesus intervém para lhes fazer compreender que este é o modo de agir que se encontra nas sociedades humanas: a lei dos mais fortes, que se apropriam do poder para “senhorear e dominar” os súbditos. “Não pode ser assim entre vós!”, diz Jesus com toda a clareza. Essa é ainda a manifestação da lei da selva. A lei da humanização, da civilização, do Evangelho não pode ser desse tipo. O modelo que lhes propõe é Ele próprio no seu serviço e dom da vida: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela multidão” (Mc 10,45).

Este é um ensinamento que deve ser constantemente meditado, pois os desvios que os Evangelhos referem no grupo dos discípulos não são estranhos também na nossa Igreja, nas nossas dioceses e comunidades, nas nossas famílias. Como em todos os grupos, também na Igreja há necessidade de liderança, administração, coordenação e governo, mas isso tem de seguir um caminho distinto da forma como habitualmente se entendem estes papéis. De contrário, também na Igreja se instalará a lei da selva. É particularmente importante que aqueles que têm papéis de direção, de coordenação e decisão, aqueles que administram os bens de Deus para todos (bispos, padres, diáconos, administradores, líderes das comunidades, grupos, movimentos …), aprendam a lógica do serviço, no modo de falar, de estar, de vestir, de acolher, de partilhar. Devem capacitar-se que a casa que administram não lhes pertence. O que fazem é administrar os bens e dons de Deus para todos. Eles próprios, pela sua vida e pela misericórdia são o dom mais precioso que Deus oferece à sua comunidade. Isso é fonte de uma grande alegria, mas igualmente objeto de uma grande responsabilidade e cuidado, tanto ao nível pessoal como comunitário e de toda a Igreja. Estas pessoas não são perfeitas e precisam, como os outros irmãos, de ser olhadas com misericórdia e compreensão. Mas não se pode pactuar com situações em que comunidades inteiras e sobretudo os mais fracos, sejam feridos, lesados, defraudados por aqueles a quem foi confiado e recomendado o serviço da misericórdia.

Não confundamos, porém a atitude humildade e de serviço com a abstenção de discernir, julgar, decidir, reagir. A atitude de serviço misericordioso é aliada inseparável da busca da verdade, da honestidade e da justiça. Sem essa busca constante de autenticidade, cai-se no relativismo, no descrédito e na abstenção conivente. Jesus teria morrido tranquilo e velhinho se tivesse seguido esse caminho! Quem preside, tem o dever olhar com misericórdia, de buscar vias de comunhão na análise e na tomada de decisões, mas deve também tomar opções com coragem e humildade. De contrário, não faz o seu papel, não serve aqueles que devia servir.

 

Conclusão

Somos, pois chamados, hoje, à luz da palavra de Deus, a decidir com que atitude enfrentamos a vida e sobretudo o âmbito das nossas relações e responsabilidades, na família, no trabalho, na comunidade cristã, na sociedade.

A primeira questão que se nos coloca é ao nível da atitude fundamental. Há que decidir se somos espectadores, utentes, consumidores do que fazem os outros ou elementos ativos e criativos, colocando ao serviço dos outros os dons que recebemos. A atitude misericordiosa não nos pode deixar tranquilos nas poltronas do nosso egoísmo, comodismo ou indiferença. Deus quer construir o mundo novo e conta connosco. Ninguém pode dizer, com pseudohumildade ou comodismo que não serve para nada. Cada um tem de dizer com humilde honestidade: eu sirvo para servir.

Participar, ser ativo e criativo, assumir responsabilidades e liderar em tantos campos é fundamental para a vida da família, da comunidade, da sociedade. Comprometer-se assim, segundo as necessidades e capacidades de cada um faz parte da consciência evangélica e de uma honesta cidadania.

É fundamental definir o estilo de participação e de contributo que todos somos chamados a prestar à comunidade, qual o propósito que nos move, e a atitude que assumimos: queremos simplesmente enveredar por uma lógica de projeção pessoal e egoísta, de conquista do poder e domínio sobre os outros, segundo o modelo da lei d selva; ou assumir a atitude de serviço, de partilha, de dom de nós mesmos?

A misericórdia não entra neste quadro como algo de invasivo, confessional ou idílico. A alternativa à misericórdia solidária é a frieza tecnicista, que desliza facilmente para a insensibilidade desumanizante e para a ditadura burocrática. Sem sensibilidade misericordiosa, não é possível uma gestão solidária e humanizante.

A lavagem dos pés, dizíamos ao início, exprime uma atitude de serviço comprometido e criativo, atento e afetivo, que pode ir até ao dom da própria vida. Esse é o legado que Jesus nos deixou, na hora de passar deste mundo para o Pai, como expressão do seu amor misericordioso.

Conservemos esta imagem por excelência do serviço, juntamente com as palavras de Jesus, que lhe podem servir de legenda:

 

Uma vez que sabeis isto, sereis felizes se o puserdes em prática!

 

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07 de Março de 2016