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Catequeses Quaresmais – “Um olhar sobre a Família”

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No passado Domingo, dia 12 de março, D. José Ornelas proferiu a primeira catequese quaresmal, na Igreja de Santa Maria, no Barreiro. O tema desta primeira catequese foi: “Família, berço da vida e da humanização”. No final da catequese do Bispo de Setúbal (versão integral abaixo), o casal Dário Guerreiro e Alexandra Chumbo, pais de seis filhos, deram o seu testemunho de vida em família.

Gravação vídeo no canal oficial do YouTube da Diocese de Setúbal, em https://youtu.be/_cns7Izf7Ug.


Introdução

A família ocupa uma posição determinante na vida de qualquer ser humano, tanto na sua génese e desenvolvimento, como na constituição do seu caráter e da sua felicidade. Sem o apoio de um círculo de outras pessoas que acolham, acarinhem, defendam, eduquem, nenhum ser humano poderia subsistir e ter uma vida digna e feliz.

Por esta razão, dar atenção às famílias, cuidar delas e fazer tudo para que cumpram bem a sua missão é uma condição fundamental para assegurar um futuro feliz para cada pessoa, bem como o sucesso da sociedade e da humanidade inteira.

Essa atenção torna-se mais importante, nos tempos de profunda e rápida mudança em que vivemos, em que a família se sente questionada por situações completamente novas e desafiada a encontrar respostas para problemas e possibilidades que nem se sonhavam há poucas décadas.

Além disso, nesta busca de nova compreensão e soluções, a instituição familiar é positiva ou negativamente influenciada pelos sistemas ideológicos, políticos, económicos e religiosos, que podem favorecer ou limitar e manipular as condições da sua ação.

Nesta situação, a Igreja não pode deixar de participar na busca de caminhos novos, para tempos novos, promovendo, a partir das famílias que a formam, uma reflexão que ilumine o complexo mundo em que nos inserimos, com a luz do Evangelho e a escuta atenta e fiel do Espírito Santo, que sempre a guia através da História.

Este foi o objetivo do último Sínodo, realizado em duas sessões, em 2014 e 2015, a partir do qual o papa Francisco enviou a toda a Igreja a exortação Apostólica Amoris Laetitia – A Alegria do Amor, convidando as famílias e as comunidades cristãs a refletir sobre as orientações sinodais, para renovar a sua própria vida, a Igreja e a sociedade.

É com este mesmo objetivo que também a nossa Igreja de Setúbal se põe a caminho com toda a Igreja, refletindo, rezando e buscando caminhos concretos de renovação desta  pedra fundamental para a construção do futuro que é a família. Esse é o propósito destas reflexões quaresmais, preparadas em colaboração por vários casais, presbíteros, diáconos e o bispo.

 

1.      À imagem de Deus, homem e mulher os criou (Cf. AL 8-13; 89-164)

No projeto de Deus, cada família é chamada a assumir-se como protagonista fundamental naquilo que de mais precioso o mundo tem: a vida e o amor. Criaturas frágeis, ao nascer, fomos colocados nos braços daqueles que nos acarinharam, e fizeram crescer como pessoas e filhos/as de Deus. A nossa família, ou aqueles que a substituíram, foram os braços sacramentais com que Deus nos criou e acompanhou.

A vida humana, individual e como sociedade, só é possível no contexto das relações que cria. A tradição bíblica afirma esta realidade fundamental ao colocar na boca de Deus a expressão: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). Em seguida, apresenta o casal humano como modelo e ponto de partida dessa existência baseada na relação entre pessoas, caraterizada pelo amor e a transmissão da vida. Neste estar frente a frente numa relação de igualdade e diversidade – “Osso dos meus ossos e carne da minha carne” – tem início o processo de saída do isolamento individualista, a afirmação de si próprio e dos outros. É uma relação que respeita a diversidade, que não se contrapõe mas atrai, até criar uma união de vida e de complementaridade: “serão os dois uma só carne”, uma existência humana unitária e complementar.

Por isso, o relacionamento no casal e na família não responde apenas a questões de utilidade para perpetuar e desenvolver a vida e resolver problemas domésticos, como se fora uma equipa de trabalho, de negócios, de política ou de programação. Tem algo de determinante que o distingue: o afeto, o amor que une as pessoas, para além da sua eficiência e da sua “utilidade”. Esses laços de reconhecimento, de afeto e de solidariedade pela pessoa querida, para além daquilo que produz, pode e sabe, estão na base da identidade pessoal, da autoestima e da própria felicidade. É a partir do estatuto familiar que se entende a dignidade da pessoa humana e se pode organizar uma sociedade humanista, justa e em paz.

Este não é apenas um princípio humano. Diz a Bíblia que tem a sua origem no ser mesmo de Deus: “Criou-os à sua imagem e semelhança… homem e mulher os criou” (Gn 1,21). A imagem de Deus criador, não é o homem ou a mulher, mas essa complementaridade relacional homem-mulher, que atinge no laço matrimonial a sua mais elevada expressão, seja no amor mútuo, seja na continuação da vida. Evidentemente que estas narrações da Bíblia não representam uma crónica jornalística da ação criadora de Deus, mas uma reflexão muito expressiva sobre o valor e dignidade de cada pessoa, de cada família e da família humana no seu conjunto, segundo o projeto de Deus.

A semelhança do ser humano – homem-mulher – com Deus adquire uma nova clareza e amplidão, à luz da revelação que Jesus nos faz de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo, numa relação de amor fecundo e criador. A Igreja sempre viu no laço matrimonial uma expressão privilegiada de Deus Trindade, reflexo do amor e da vida de Deus[1]. Esse é o ideal que Deus coloca diante da família humana, a imagem do seu próprio ser relacional e dador de vida.

É na consciência do reflexo e presença do amor de Deus nos esposos que se fundamenta o carácter sacramental do matrimónio. O Sacramento é sempre uma forma de presença salvadora de Deus, que se exprime em linguagem e gestos humanos. No seu amor mútuo, no carinho generoso e responsável com que acolhem e tornam possível o crescimento dos filhos, o casal é transparência (Sacramento) de Deus, que, deste modo, age eficazmente através deles, para eles próprios, para os filhos e a família. Na vida de uma pessoa, a primeira perceção “sacramental” de Deus são os pais que geram e acolhem um bebé. Só depois virão os outros sacramentos.

Toda esta realidade é vivida de forma sempre imperfeita, requerendo esforço, de cada um dos esposos e de ambos em conjunto. O esforço, a paciência e o perdão não são o lado aborrecido do matrimónio, mas a expressão do valor e do apreço que se dá ao relacionamento para preservar e desenvolver o sonho que se iniciou juntos. Não há que perder a alegria nem deixar arrefecer o amor que levou ao início do caminho em comum. Essas horas fazem parte do percurso. O matrimónio como vivência e como sacramento não é simplesmente o dia do casamento, mas uma vida inteira, onde dias de crise, de dúvida e de cansaço vão aparecer. Aí é necessário, mais do que nunca, retornar às raízes do estar juntos, reavivar as memórias do carinho e dos compromissos, recorrer ao perdão e ao reencontro e sobretudo tomar consciência da presença de Deus e a Ele recorrer; o mesmo que uniu e continua a tornar possível o caminho em comum. Mas a ajuda dos amigos, de outro casal, da comunidade e de pessoas competentes, é preciosa nestes casos.

Mas este quadro faz-nos igualmente compreender quão destrutivos podem ser os processos de violência, de abusos, de busca de supremacia e de domínio de um sobre outro, pois perverte totalmente o sentido e a função da família, deixando frustradas e desamparadas as vítimas destes processos destruidores. Pode haver, de facto, como diz o papa, situações em que não seja mais possível a convivência, para salvar a dignidade das pessoas, sobretudo dos mais frágeis que são as crianças. Os casais vítimas destas situações, particularmente as suas vítimas, devem encontrar na comunidade eclesial e da sociedade uma forte solidariedade e compreensão, que os ajude a superar situações tão dramáticas.

2.      O berço apropriado para gerar e transmitir a vida (AL 14-18)

É, pois, neste ambiente de amor que devem surgir e ser acompanhadas as novas vidas humanas. Não se trata apenas de uma questão biológica. “À imagem de Deus”, os dois,  homem e mulher, tornam-se participantes diretos na obra criadora de Deus, não apenas enquanto geram novas pessoas, mas enquanto lhes transmitem uma qualidade de vida segundo o modelo que eles próprios vivem: do carinho e atenção que que se oferecem mutuamente, dos conhecimentos e sonhos que partilham, do engenho e esforço com que superam as dificuldades, dos relacionamentos e solidariedades em que participam, da fé que os anima e lhes dá esperança. A família é o verdadeiro “laboratório de vida e de humanidade”, onde nasce e se desenvolve, um ser humano em todas as suas dimensões, marcado pelo afeto que dará estabilidade e sentido à sua vida.

O específico e insubstituível da família, que constitui o seu desafio e a sua missão é precisamente a criação deste ambiente onde se vive, se partilha e se transmite a vida com qualidade e dignidade humana. O amor do casal e a geração e acompanhamento dos filhos não são realidades separadas, mas reclamam-se mutuamente, na dinâmica do amor fiel e fecundo, à imagem do amor de Deus.

Um desígnio tão importante para a família e a sociedade requer generosidade e responsabilidade. Infelizmente as situações económicas e a mentalidade difusa na sociedade, acabam por transformar a alegria da parentalidade num peso, que, para tantas famílias se torna realmente dramático. Ninguém pode decidir em lugar do próprio casal quantos filhos devem ter e muito menos julga-los pelas decisões que tomam neste campo. Os critérios para esta decisão não têm a ver simplesmente com fatores económicos e com a lógica da comodidade do casal, mas sim com o bem do conjunto da família, com a possibilidade de gerar e educar, tendo em conta que, particularmente nestes casos, a generosidade dos pais, acaba por ser compensada pela solidariedade que se cria numa família em que os filhos aprendem a partilhar os bens disponíveis e a cuidar uns dos outros, preparando-se mais ativamente para a vida.

Não há duvida, porém, que todos temos o dever de pugnar por políticas económicas e sociais mais favoráveis às famílias que querem e estão em condições de crescer. De outro modo, a nossa sociedade encontra-se em risco sério, por não conseguir mesmo sobreviver.

 

3.      Um projeto em evolução e para viver e desenvolver juntos

Esta visão que propõe a Palavra de Deus através da Igreja não é um quadro idílico e teórico do matrimónio, mas representa o seu ponto de partida e o ideal do caminho a percorrer, num mundo que, tantas vezes segue outras estradas. Na época do provisório, do utilitário e do descartável em que vivemos, esta perspetiva de um relacionamento fiel e durável, da gratuidade e do dom do amor sem reservas, não é aceite por muitos como evidente ou desejável.

Os dados estatísticos sobre o nosso país fornecem-nos um quadro pouco animador a este respeito, que evidencia uma radical mudança de mentalidade a respeito do casamento e da família: Mais de metade dos casamentos acaba em separação; o casamento religioso passou de 91% em 1960, para 33% em 2011. A convivência informal, sem casamento, passou de 13,3%  em 2001 para 49,6% em 2012; a parentalidade fora do casamento passou de 22% em 2000 para 46% em 2012, sendo 13% fora de qualquer coabitação. A isto, junte-se um outro dado muito preocupante para o futuro da nossa sociedade que é a taxa de natalidade, no fundo da tabela a nível mundial.

Estes dados, e muitos outros que poderíamos referir, não podem deixar de preocupar, de nos fazer refletir e motivar, para ajudar as famílias, a recuperar a sua vocação e missão, como contributo básico para a criação de uma sociedade de pessoas com dignidade, liberdade criativa e capacidade de amar e de participar na construção de um mundo mais humano e feliz.

A nossa sensibilidade humana, iluminada pela fé, orienta-nos de uma forma prática neste caminho. O papa Francisco comenta longamente o hino ao amor, que nos lega S. Paulo na primeira carta aos Coríntios (1Co 13,1-13)[2]. Gostaria apenas de referir aqui algumas das atitudes mais importantes deste hino, que podem inspirar o percurso de vida da família.

A)          O amor que dura tem tanto de espontâneo como de vontade e tenacidade.  É a mais bela aventura da vida humana, na diversidade de expressões que assume. A descoberta do amor assume sempre uma manifestação de alegria, de plenitude do próprio ser e de desejo de relação, que galvaniza a pessoa e toda a sua capacidade criativa. Mas não se mantém apenas pela espontaneidade com que se manifesta, se não for aliado a uma vontade e um dom de si, a uma decisão positiva, esforçada e persistente de querer continuar a amar, mesmo quando a espontaneidade perde energia. O amor nasce, com frequência, independentemente da vontade e da razão, como um dom e uma paixão que movem a existência. Mas não se mantêm sem que a paixão seja capaz de mover a razão e a vontade, num compromisso concreto de vida e de comunhão.

B)           Um amor sempre refeito pelo perdão e a reconciliação. O amor humano nunca é perfeito, porque não existem pessoas perfeitas. Está ligado à precariedade e limitação das pessoas, com as suas divergências, debilidades, incoerências, infidelidades. Apenas a afirmação da vontade efetiva de manter o amor pode torna-lo verdadeiramente duradouro. O perdão é como o óleo num motor, que impede que este aqueça e rebente, apesar da fricção das peças que o compõem. Sem o perdão recíproco, não é possível manter uma relação durável.

C)           Esse é o amor fiel, à imagem da fidelidade de Deus. A reciprocidade e a justiça no amor não se regem pela lei da mútua anulação em caso de falha de uma parte, mas de um amor que supera os momentos de fraqueza. Se o braço de um se encolhe, o do outro alonga-se para que a relação não se interrompa. Isso é ser “à imagem e semelhança de Deus”, que sempre mantém a fidelidade e a aliança, sempre vai à procura da ovelha perdida, sempre acolhe, de braços abertos, o filho que regressa a casa.

Esta fidelidade para além da reciprocidade é fundamental para criar laços de confiança no outro, mesmo para além dos erros, das falhas e dos dramas que a vida comporta. Não é um caminho fácil, mas é o caminho que permite manter o tesouro de relações fortes que dão sentido à vida própria e dos que nos são caros, apesar das suas debilidades.

D)          O amor fiel é tornado possível pela presença de Deus nos relacionamentos. Por isso, é importante que o casal e a família (e não apenas cada um individualmente) arranjem espaço para esta presença. Rezar juntos é colocar-se juntos perante Deus. É importante que nos coloquemos frente a frente, para exprimir o amor, para discutir, programar, avaliar. Mas é igualmente importante que o casal e a sua família se coloquem todos diante de Deus, que é o fundador e garante da solidez do seu relacionamento. Colocar-se juntos à escuta de Deus e partilhar a experiência de fé em família é o cimento para ter uma família unida, para superar dificuldades, reconciliar pontos de vista e construir o próprio futuro com alegria e confiança.

Esta é uma das formas fundamentais de realizar a dimensão sacramental do matrimónio: fazer que Deus esteja realmente presente na vida de cada dia e não seja uma longínqua recordação do dia do casamento ou de uma prática semanal de devoção. A família tem de ser o lugar mais habitual da presença de Deus na vida de todos os dias.

 

4.      A nossa família no projeto de Deus para a humanidade

Gostaria de terminar esta reflexão com alguns desafios mais concretos para cada uma das nossas famílias, à luz do caminho de família que nos propõe a Igreja e a partir da quaresma que estamos vivendo:

A)           Este é o tempo de (re)tomar consciência que a nossa família faz parte projeto de Deus, neste mundo, nesta Igreja, nesta paróquia: nós, mulher, marido, filhos/as, pais, avós e outros que fazem parte da família mais alargada. Foi Deus que nos chamou, nos reuniu para sermos o que somos: uma família onde Ele habita. Ele olha com carinho para nós e, apesar das nossas dificuldades e falhas, conta connosco e torna possível que sejamos “sacramento”, sinal, transparência do seu amor, a começar pelo relacionamento que temos uns com os outros.

B)           É tempo de encontrar espaço para escutarmos a Deus, na nossa família, para partilharmos a sua presença, para lhe pedirmos ajuda, alegria e vida, como família. Que não passe um dia em que, na nossa casa, não ressoe a palavra de Deus, uma oração comum, um silêncio de escuta da voz de Deus.

 C)          De cada um de nós  depende a qualidade da nossa família. Apesar das nossas limitações e falhas, podemos construir a alegria de viver juntos, a confiança de contar uns com os outros, a certeza de que, mesmo quando falhamos, podemos sempre receber o perdão e a compreensão daqueles que nos amam e que amamos. Não podemos esperar que a nossa família seja perfeita para nos empenharmos nela. A lógica do amor é de redobrar a atenção e o carinho precisamente onde fazem falta. Esta Quaresma é o momento apropriado para investir tempo, boa vontade, carinho, esforço e perdão na nossa família.

D)          É tempo de encontrar espaço para nos escutarmos mutuamente: mulher e marido, filhos e pais, irmãos e irmãs e os mais idosos que possamos ter connosco. É tempo para celebrar as alegrias de um, as preocupações de outro, de estar mais próximo daquele que está a atravessar um período difícil, de apoiar os projetos daquela que está a começar uma nova etapa da vida.

É tempo de sermos mais família!


[1]           Cf. AL 63; 71; 161; 314; 324.

[2]           Este comentário ocupa grande parte do Capítulo IV da Exortação A alegria do amor, especialmente os números 90 a 120.

 

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14 de Março de 2017