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Homilia de D. José Ornelas na missa de sétimo dia de D. Manuel Martins

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Ontem, domingo, dia 01 de outubro, realizou-se na Sé de Setúbal a missa de sétimo dia por D. Manuel Martins, uma semana depois da sua partida para a plenitude da vida em Deus. D. José Ornelas presidiu à Eucaristia, numa celebração que contou com a presença do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Na homilia, o Bispo de Setúbal centrou as suas palavras no papel do Bispo, pastor à imagem de Cristo e dos Apóstolos. Leia a homilia em seguida.

“Decorre hoje uma semana, desde a partida do Senhor Dom Manuel das Silva Martins para a plenitude da vida em Deus. Acompanhámos com profunda dor o termo da sua vida entre nós e as solenes exéquias, realizadas em Leça do Balio, sua terra natal, acedendo ao seu manifesto desejo de ser sepultado junto dos seus pais.

Ao longo desta semana, recebemos inúmeras mensagens e ouvimos muitas reações dos mais diversos quadrantes da nossa diocese, do país e da Igreja universal, a começar pela palavra do Papa Francisco, que acaba de se ler. Foram tantas as afirmações de simpatia e de justo tributo e gratidão pela sua estatura eclesial e social, pela atitude vertical e corajosa e sobretudo pela sua sensibilidade perante os pobres, os esquecidos e carenciados de todo o género. Hoje, nesta igreja de Santa Maria da Graça que, com ele, passou a ser a Sé – a Catedral – da nossa Diocese de Setúbal, gostaria de centrar a nossa atenção no seu papel de Bispo, de pastor à imagem de Cristo e dos Apóstolos. E deixo-me guiar pela Palavra de Deus que acaba de ser proclamada na nossa assembleia.

Dom Manuel foi, antes de mais, uma expressão concreta, para nós, da imagem inspiradora do Bom Pastor que Jesus utiliza para falar de si próprio e da sua missão. Pastor que guia, que cuida, que alimenta, mas sobretudo, pastor que oferece a sua vida pelos seus; toda a sua vida! Pastor próximo que conhece os seus pelo nome, que trata cada um segundo as suas possibilidades e vai à procura dos que erram, acolhendo, com alegria o seu regresso. Pastor de palavras mansas e acalentadoras, mas igualmente de voz dura e corajosa diante dos lobos vorazes, tanto no exterior como no interior do redil. Conhecemos bem esses diversos tons de voz, com que Dom Manuel tornou presente o cuidado de Deus para com a nossa Igreja. Ele próprio o exprimiu na sua primeira palavra, nesta Sé, no dia em que começou o seu serviço episcopal, a 26 de outubro de 1975:

Nasci Bispo em Setúbal, agora sou de Setúbal. Aqui anunciarei o Evangelho da libertação, na justiça e no amor. Aqui acompanharei, entusiasmado, todos os que trabalham e lutam para que o homem seja mais homem, numa sociedade justa. Aqui proclamarei o Cristo vivo – que veio e está no meio de nós – o único que pode alicerçar na fraternidade a sociedade justa que é a aspiração angustiante de todos nós.

Aí está a fonte inspiradora e sustentadora do carinho, da coragem e da entrega do nosso primeiro Bispo à sua missão. Nele se manifestou o coração manso e humilde do Bom Pastor, a sua sensibilidade particular para com os mais carenciados, os doentes, os desempregados, os jovens sem perspetivas, os desprovidos de meios para uma vida digna. Mas é também aí que tem origem a sua fidelidade profética para gritar, denunciar e propor com entusiasmo o Evangelho da libertação, da justiça, da dignidade e da paz. Esta foi sempre a “cartilha” simples e luminosa do seu pensar e do seu agir. Gosto de vê-lo assim, como homem fiel ao seu Senhor e Mestre, em nome do qual veio para Setúbal, enviado pela Igreja que prometeu servir. E, cada vez que penso desse modo, sinto novo alento, nova fé e nova coragem. Porque o mundo pode ser melhor e Deus torna-nos capazes de lutar por essa mudança. O Bispo Dom Manuel foi uma dessas pessoas que acreditou e se envolveu totalmente nessa lógica de transformação.

A segunda leitura que proclamámos mostra, de uma forma prática, o modo como Dom Manuel entendeu e viveu a sua fé e o seu serviço episcopal: um testemunho do amor de Deus para com a humanidade, particularmente para os que mais precisam. Como S. João ele foi bem claro em chamar “mentira” a uma pretensa religião, sem amor; sem gestos concretos de amor. É daí que vem a sua indignação perante aqueles que, na Igreja, na política, na economia ou nas organizações sociais, se servem das pessoas em vez de servi-las. Foi baseado nessa primazia do amor, da atenção e do dom de si que ele se prodigalizou especialmente ao serviço dos mais carenciados, que eram – e continuam a ser – tantos na nossa Diocese. Pensando neles é que implementou e apoiou instituições sociais, que continuam a estar bem presentes nas paróquias e em outras organizações, dentro e fora da Igreja. Veja-se o carinho com que apoiou a Caritas diocesana e os centros paroquiais, como instituições ao serviço de quem precisa; a sua denúncia de todas as formas de opressão e exploração, o seu desejo de ir às raízes iníquas das políticas e das economias do lucro em favor dos que controlam os meios que Deus providenciou para todos.

Foi também essa preocupação de criação de um mundo mais humano e de relações mais justas e respeitadoras da dignidade, que o levaram a ser homem de pontes, de convergências e colaborações, tanto como modo de viver a cidadania, como na preocupação de ir ao encontro dos mais carenciados. Essa abertura de mente e de coração sempre o levou a cruzar fronteiras e muros de todo o tipo, abrindo a nossa Igreja de Setúbal a problemáticas e sonhos de horizontes abertos e universais, superando quezílias estéreis e lógicas fechadas em interesses que esquecem o bem comum.

Neste dia de eleições, possa o Espírito que guiou Dom Manuel, inspirar-nos a todos, antes de mais pela participação ativa na vida das nossas autarquias e do nosso país. Na perspetiva de Dom Manuel, ser cristão e ser abstencionista são atitudes que não combinam! Possa também o seu modo de viver inspirar àqueles que vão ser eleitos, na nossa península sadina e em todo o país, atitudes e ações de verdadeiro serviço ao povo, para que a justiça e a solidariedade por que ele sempre lutou, possam afirmar-se como garantia de uma sociedade digna e construtora de paz.

Finalmente, um outro traço do nosso primeiro Bispo foi a coerência de vida, como homem e como responsável da Igreja de Setúbal e membro do Colégio episcopal da Igreja em Portugal. Na primeira leitura, escutámos o discurso do apóstolo Paulo, em Mileto, aos responsáveis da Igreja, falando da sua missão, das lutas e dificuldades do seu ministério, da perspetiva de perseguições e de proximidade de deixar este mundo, firmando o devotado dom de si próprio ao Evangelho. Mas, neste momento de perigo para a sua pessoa, este Paulo, apóstolo da universalidade, avançado em idade e provado pelas canseiras, não se fixa em si mesmo, mas pensa nas Igrejas que fundou e naqueles que iluminou, confiando todos ao Senhor, que continua vivo e vivificador. Sempre viveu a pensar e lutar pelos outros e também os seus pensamentos finais é para eles que se orientam.

Lembrei-me deste texto, ao reler as últimas palavras do Dom Manuel nesta nossa catedral, no dia emblemático da quinta-feira santa da última Páscoa – dia do sacerdócio e do serviço eclesial – que ele celebrou connosco. Também Dom Manuel fez uma breve referência à sua ação, exprimiu a sua ideia de uma próxima partida deste mundo e encomendou a Deus a Igreja ao serviço da qual tinha sido colocado:

Tudo na nossa vida é um dom de Deus. E este pensamento inimaginável de Deus para o episcopado foi um dom grandiosíssimo que nunca esperei. Um dom de Deus que consistiu em eu estar nesta diocese. O primeiro bispo de uma diocese criada. Uma graça tão grande, que o tempo que já vivi e o tempo que me resta, não chegarão para eu agradecer. É a última vez que, com certeza, estarei convosco. Quero pedir todas as graças para toda a diocese, para o seu Bispo, para o seu Povo tão bom, para o seu Clero tão grandioso, para o Seminário, para as Instituições Religiosas. Enfim, para todos!

As duas palavras do nosso primeiro Bispo, que aqui citei, no início e no fim do seu serviço episcopal, mostram muito da sua alma, da sua vida, das suas preocupações e dos seus sonhos. Gostaria que ficassem também na memória da nossa Igreja de Setúbal e que fossem igualmente propostas aos nossos jovens, independentemente das suas convicções e modos de ver a vida. O mundo de hoje e a nossa Igreja precisam de pessoas, de profetas, de lutadores e sonhadores como Dom Manuel.

Como os anciãos na assembleia de Mileto perante Paulo, também nós sentimos o espinho doloroso da saudade pela partida do nosso irmão, Bispo e Pastor, Dom Manuel Martins. Mas essa mágoa não nos impede de sentir igualmente alegria, gosto e até um justo orgulho, por termos feito caminho com ele na peregrinação desta terra e por acreditarmos que o fim dessa peregrinação é mesmo a plenitude da vida, junto do Bom Pastor, que ele seguiu e nos fez entrever, na sua palavra, nos seus gestos, na sua fé.

Obrigado, caro Dom Manuel,
nosso Bispo, nosso irmão e companheiro
na peregrinação desta terra
e no caminho da humanidade
em direção à plenitude da vida,
junto do Senhor ressuscitado.
Bendito seja Deus que o enviou a nós, como primeiro Bispo,
colocando uma figura tão inspiradora
nas origens da nossa Igreja de Setúbal.
Que o Bom Pastor o receba nos seus braços de misericórdia
e nos faça cuidar e fazer crescer
as sementes de Evangelho que você foi lançando
nas terras fecundas de Setúbal,
na nossa Igreja, no nosso país e no mundo.

 

Setúbal, 01 de outubro de 2017

+ José Ornelas Carvalho

                                                                                      Bispo de Setúbal

 

Foto: Ricardo Perna

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02 de Outubro de 2017