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Procissão Penitencial: “Jesus é um desses imolados no altar do poder, das ideologias, da ganância e do lucro”

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Na noite de Sexta-feira Santa, realizou-se, pelas ruas da cidade de Setúbal, a já habitual Procissão Penitencial. Saindo da Igreja de São Julião em direção à Sé, esta manifestação pública de fé evoca a paixão e morte de Jesus. Nas palavras dirigidas aos fiéis, no final da procissão, D. José Ornelas refletiu sobre os principais intervenientes no processo condenatório de Jesus: “o Império Romano, as autoridades judaicas, os discípulos e… Deus, silencioso, mas plenamente presente a cada momento”. 

Lembrou, ainda, que cada Sexta-feira Santa que é celebramos é uma oportunidade para ouvir a voz de Jesus, “misturada com a de todos os reprimidos, calados e abusados pelos sistemas de poder” e “para dar passos de denúncia e de proposta, para que a dignidade e a justiça possam encontrar espaço nas nossas atitudes e no nosso compromisso”.

“Condenado como rei, porque não quis ser um rei como os outros – disse o Bispo de Setúbal – Jesus é um desses imolados no altar do poder, das ideologias, da ganância e do lucro. Nele se espelha o exército dos inocentes e sem-valor perante as grandes estratégias políticas e militares, ao longo dos séculos e hoje: a Síria, o povo Rohingya, minorias incómodas, refugiados. Gente que lutou e foi cilindrada por poderes despóticos, cuja única legitimidade para governar é a força e a violência”.

E acrescentou: “Mas é também imagem das vítimas das tiranias caseiras e silenciosas da opressão e violência doméstica, do ‘bullying’ nas nossas escolas, das vítimas do tráfego humano, da exploração de imigrantes nas nossas explorações agrícolas, também aqui, no território da nossa diocese”.

D. José Ornelas exortou ainda a desarmar as violências e a lutar por uma Igreja acolhedora: “Neste dia é especialmente importante desarmar as violências. Lutar, entre nós, por uma Igreja acolhedora e fiel ao seu Senhor. Lutar por novo estilo de resolver as nossas diferenças e conflitos que não seja a agressão e a guerra”.

Leia, abaixo (depois da foto-galeria), a pregação completa do Bispo de Setúbal, D. José Ornelas.

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Pregação de D. José Ornelas no final da Procissão Penitencial 2018

Estamos a terminar as celebrações desta Sexta-feira Santa, em que fizemos memória da paixão e morte do Senhor Jesus. A procissão que estamos a concluir configura-nos, de certo modo, ao gesto de respeito, estima e coragem de José de Arimateia e de Nicodemos, dois “discípulos noturnos” de Jesus, que pediram a Pilatos o corpo do crucificado e cumpriram o piedoso dever de lhe dar sepultura, desafiando o desprezo, a suspeição e o perigo que esse gesto comportava.

O desfecho do processo condenatório de Jesus merece que dediquemos uns momentos de reflexão no fim deste dia, tomando como referência os principais personagens que estiveram implicados no processo de Jesus: o Império Romano, as autoridades judaicas, os discípulos e… Deus, silencioso, mas plenamente presente a cada momento.

Jesus e o império

O responsável máximo pela morte de Jesus é o Império Romano, a mais eficaz organização sociopolítica do tempo e Pilatos, com as suas tropas, é o seu representante. Organiza a vida civil, constrói estradas e cidades e até tem um sistema de justiça com laivos de equidade, para os critérios do tempo, mas domina pela força e pela repressão, com compadrios e corrupção sobretudo entre os grandes.

Herodes e a elite política judaica, sobretudo o grupo ligado aos saduceus, ao qual pertenciam as nobres famílias sacerdotais, entram neste jogo de política vassala e intriguista, dentro das margens permitidas pela dominação romana.

Para estes, Jesus é um perigoso revolucionário, ou um visionário sem interesse. A justiça e o direito não têm importância nenhuma. O diálogo de Jesus com Pilatos é revelador das preocupações, medos e jogadas de poder: És rei? … Não respondes? … Que é a verdade?… Não encontro nele culpa alguma… mas, por medo dos judeus entregou-o para ser crucificado.

Jesus é vítima destes jogos de poder, mas, na realidade, mostra-se livre em relação a eles: o meu reino não é deste mundo… Ele é um rei de verdade… Tu não tens poder… é do alto o poder. O teu poder é ilusão, mesmo que sejas aparentemente poderoso. E afirma-o com clareza e coragem, diante deles.

Condenado como rei, porque não quis ser um rei como os outros, por querer um mundo novo em que a riqueza seja para todos e não apenas para alguns; em que os que têm autoridade sejam os que cuidam verdadeiramente do bem de todos, a começar pelos que não têm voz nem capacidade de reivindicação.

Por isso, é um desses imolados no altar do poder, das ideologias, da ganância e do lucro. Nele se espelha o exército dos inocentes e sem-valor perante as grandes estratégias políticas e militares, ao longo dos séculos e hoje: Síria, o povo Rohingya, minorias incómodas, refugiados. Gente que lutou e foi cilindrada por poderes despóticos, cuja única legitimidade para governar é a força e a violência.

Mas é também imagem das vítimas das tiranias caseiras e silenciosas da opressão e violência doméstica, do “bullying” nas nossas escolas, das vítimas do tráfego humano, da exploração de imigrantes nas nossas explorações agrícolas, também aqui, no território da nossa diocese.

Diante de todos esses poderosos, Ele – ensanguentado, torturado, com uma coroa de espinhos – continua a dizer: “Sim, eu sou rei… todo aquele que se funda na verdade escuta a minha voz“.

Cada vez que celebramos a sexta-feira santa temos uma oportunidade para ouvir essa Sua voz misturada com a de todos os reprimidos, calados e abusados pelos sistemas de poder; para dar passos de denúncia e de proposta, para mostrar solidariedade e empenhamento; para fazer que a dignidade e a justiça, possam encontrar espaço nas nossas atitudes e no nosso compromisso.

Jesus e as autoridades religiosas

Um outro grupo importante neste dia foi o das autoridades religiosas. Pessoas bem convencidas do seu papel e “devotas” das instituições e normas religiosas. Pintaram Deus ao jeito dos grandes da terra: deus de poder e violência. Um deus assim justifica e beneficia a autoridade pessoal deles. Tornaram-se “especialistas” de religião e mestres inapeláveis em nome de Deus, guardiões de leis imutáveis e executores de sentenças mortais.

Foram os chamados mais religiosos que causaram a morte de Jesus, por Ele não se vergar às leis deles que chamava “preceitos humanos”, que deturpam o rosto de Deus, discriminam e fecham o caminho sobretudo aos mais pobres, os que erram na vida.

Jesus, pelo contrário, conhece Deus, o Pai do céu, com um rosto diferente: Criador, libertador, misericordioso, capaz de levantar as pessoas de todos os abismos de miséria. Sabe, além disso, que o Pai do céu, não considera inimigos, nem os chefes religiosos ou o procurador romano que causam a sua morte. O maior paradoxo da violência é a violência e a morte em nome de Deus, pois Deus é precisamente o contrário disso: o Deus da criação e da vida.

Para as autoridades, a morte de Jesus é uma vitória. Mas essa é apenas uma grande ilusão que mostra o paradoxo de uma religião que se apoia na violência: em nome do seu deus, mataram o homem, o Filho de Deus.

Em Sexta-feira santa, já foi dia de “pogroms” nos bairros judeus! No dia em que Jesus dá a vida para eliminar a violência, saía-se da Igreja e ia-se exercer vingança nos judeus.

Neste dia é especialmente importante desarmar as violências. Lutar, entre nós, por uma Igreja acolhedora e fiel ao seu Senhor. Lutar por novo estilo de resolver as nossas diferenças e conflitos que não seja a agressão e a guerra.

Jesus e os discípulos

Foi o grupo em que Jesus mais investiu. Mas, neste momento, está completamente em crise e em risco de se desmembrar. O centro da coesão e de sentido era Jesus e, para eles, Ele está morto. Judas: o discípulo que não entendeu o que significa amar e o entregou; Pedro: o discípulo forte (rocha) e senhor de si, honesto e impetuoso, decidido a dar a vida pelo Mestre, capaz mesmo de ser violento, pretende defender Jesus à espada, para impedir a sua paixão e morte. Mas, por outro lado, frágil e teimoso, termina o dia lavado em lágrimas de pena, arrependimento e frustração.

Os outros discípulos, nesta noite, estão na mesma situação de Pedro. Se Jesus tivesse permanecido no túmulo, o discipulado acabaria mesmo aqui. Mas era mesmo necessário que eles passassem, todos, por este drama, para entenderem a seriedade do amor de Jesus e a força da sua ressurreição; para entenderem que o lugar estruturante que terão na Igreja não se deve ao seu mérito, mas ao terem sido recuperados, recriados e perdoados pela misericórdia do Senhor. Era importante que percebessem a lógica da morte como dom de vida e caminho para a vida. Era mesmo necessário que Jesus desse por eles a sua vida, para que eles pudessem então dar a vida como Ele.

Além disso, São João apresenta um discípulo junto à cruz. É a imagem do que será o discipulado após a morte e ressurreição de Jesus e da vinda do Espírito. Um novo discipulado junto à cruz de Jesus, capaz de dar a vida como Ele. E há os “discípulos da noite”, os que estavam temerosos e meio envergonhados. Aos pés da cruz, as sementes que Jesus tinha lançado à terra, com a sua palavra e os seus gestos, começam a germinar.

Para já, o discipulado, a Igreja, são precisamente isso: uma semente que caiu na terra e morreu para que possa nascer uma nova planta.

Jesus e o Pai: a hora da glória

Por detrás e acima de tudo isto, está Deus, o Pai do céu. Foi Ele que enviou Jesus. Foi com Ele que Jesus sempre falou, de Filho para o Pai Santo e Querido do céu. Aparentemente, Deus perdeu a partida com os poderes humanos e não foi capaz de salvar Jesus. Na realidade, tudo isto faz parte do seu projeto de salvação ao qual Jesus deu adesão incondicional: “Não se faça a minha vontade, mas a tua!“. Ele não impôs o sofrimento e a morte a Jesus, mas não recusou enviá-lo a partilhar o sofrimento e a morte para abrir caminho para outra vida.

Jesus veio para dar vida e vida em abundância. Veio trazer o Espírito, a vida do Pai para a humanidade. Ele veio assumir essa condição débil e mortal. Não veio ao jeito do poder destruidor dos homens, mas do dom gratuito da vida de Deus.

Abdicando da violência como caminho para criar um mundo novo, baseado na solidariedade e no amor, seguro da fidelidade inquebrantável do Pai, aceitando a morte com toda a humanidade, Jesus rasga um caminho novo através desta humanidade sofredora e mortal.

Por isso, São João diz que esta é a hora da glória de Jesus. Glória porque é manifestação do poder transformador de Deus que nos liberta do limite radical que é a morte.

O silêncio do túmulo, durante todo o dia de Sábado, com que se concluem os sete dias da criação serve para anunciar a alvorada de uma nova criação, liberta do sofrimento e da morte.

É nesse silêncio que hoje nos despedimos, esperando que mature em nós também a semente da vida ser termo, a luz da madrugada sem ocaso.

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31 de Março de 2018