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“Com Arte e com Alma”: Os estuques em homenagem à Virgem no tecto da Igreja da Arrentela

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A Igreja de Nossa Senhora da Consolação, na Arrentela, foi, na passada terça-feira, dia 10, o cenário e, simultaneamente, o tema da 6ª sessão de “Com Arte e com Alma. Serões com o nosso Património”. Esta proposta da Comissão Diocesana de Arte Sacra de Setúbal, na sua 2ª edição, visa divulgar junto das comunidades paroquiais e do grande público o património de Arte Sacra existente nas sete vigararias da Diocese de Setúbal, para que o mesmo possa ser melhor defendido, preservado e usufruído pelo povo a quem ele pertence.

Como habitualmente, o Serão incluiu duas conferências.

Na primeira intervenção da noite, o Dr. Rui Manuel Mesquita Mendes, investigador e historiador local, fez uma resenha em torno da história da Igreja e da Paróquia da Arrentela e respectivo património artístico, numa comunicação intitulada “Igreja da Arrentela: algumas notas históricas e patrimoniais”.

O conferencista começou por se referir à importância da paisagem local e das actividades económicas que ela permitiu que se desenvolvessem – nomeadamente a actividade piscatória, a reparação naval e a actividade moageira – para a história e para o património da Igreja da Arrentela, por exemplo, pelo relevo que as confrarias de pescadores e de mestres de embarcação vieram a ter na vida da Igreja e para o seu património.

As informações mais antigas disponíveis sobre o templo e sobre a Paróquia da Arrentela constam das Visitações da Ordem de Santiago (que supervisionava as igrejas existentes na Península de Setúbal, nomeando os priores, recolhendo as dízimas e exercendo algum poder de administração), datando a mais antiga Visitação de 1478, que refere a existência da Ermida de Santa Maria da Arrentela: tal como acontecia em muitos outros locais de Almada, também existia na Arrentela uma capela com capelão aí colocado pela população local; e quando os visitadores da Ordem de Santiago ali chegaram e constataram a situação, não mais fizeram do que confirmar essa mesma situação, enquadrando-a no âmbito da sua Ordem.

Nas visitações do século XVI aparece a referência à Confraria de Nossa Senhora da Consolação, que é a primeira e mais antiga irmandade que existiu na Igreja da Arrentela, e também é dada a notícia de um pedido dirigido pela população da Arrentela ao Papa, de que lhes concedesse o direito de se isentarem da supervisão da Ordem de Santiago, pedido de isenção esse que foi atendido, passando os capelães da Paróquia da Arrentela a serem apresentados pelos moradores da Arrentela, através da Confraria de Nossa Senhora da Consolação, ao Arcebispo de Lisboa, para serem confirmados.

Nas Visitações de 1488 são referidos os altares de Santa Ana, de São Sebastião, do Santo Espírito e a imagem de São Cristóvão. Nas Visitações dos séculos XVI, XVII e XVIII surgem referências a várias imagens e confrarias, com os respectivos altares, que entretanto vão aparecendo, destacando-se o altar-mor dedicado a Nossa Senhora da Consolação, no século XVI. No entanto, não existem dados que permitam determinar a data da construção da igreja em lugar da antiga ermida. Por outro lado, está comprovada a existência de alguns círios da Arrentela já desde o século XVI. No século XVI, a Paróquia da Arrentela incluía, para além da própria povoação da Arrentela, a do Seixal (que se separou em 1734), a da Aldeia de Paio Pires (que se separou em 1797) e da Torre da Marinha.

O Terramoto de 1755 implicou a necessidade de reconstruir e restaurar cerca de 80% da Igreja da Arrentela, escapando apenas o altar-mor, que será, portanto, o elemento mais antigo existente na igreja. As Memórias paroquiais de 1758 dão conta dessa grande ruína de que padeceu o templo, mas é referido também que nesse mesmo ano ele já se encontrava reedificado de paredes. Os próprios moradores da Arrentela juntaram-se e assumiram a empreitada de reconstrução do espaço, sob direcção de alguns mestres locais, sendo posteriormente contratados mestres de Lisboa para concluírem as obras de maior exigência técnica, ficando o edifício então completado, seguindo-se o aparato decorativo. O financiamento destas obras proveio, à falta de outros rendimentos, do quinhão das pescarias dos próprios pescadores e mestres das embarcações da Arrentela.

É em 1763 que surge a grande obra de estuque no tecto da igreja, que a torna um espaço único na Península de Setúbal. Em 1776 são colocados mais elementos, tendo sempre como referência elementos semelhantes existentes em igrejas da cidade de Lisboa, entre os quais dois púlpitos (semelhantes aos da Igreja de São Miguel de Alfama) e um guarda-vento de três entradas (semelhante ao da Igreja de Conceição-a-Velha). A última grande obra do século XVIII foi a colocação do órgão, construído por António Xavier Machado e Cerveira. O Dr. Rui Mendes terminou a sua intervenção com a referência a várias ermidas e capelas particulares de quintas que existiam ou ainda existem nos territórios que constituíam a primitiva Paróquia da Arrentela.

Na segunda conferência deste Serão, intitulada “Estuques em homenagem à Virgem. João Baptista Picardo e os ‘arrais dos barcos de pesca’ da Arrentela (Seixal)”, a Doutora Isabel Mayer Godinho Mendonça, historiadora de Arte e investigadora, falou sobre a grande obra artística existente na Igreja da Arrentela: o seu tecto em estuque.

Trata-se de um tecto do século XVIII, mas apresentando características diferentes dos tectos estucados da mesma época existentes na zona de Lisboa, mais embutidos e muitos deles com uma marca muito visível da escola do estucador de origem suíça, João Grossi. Após os severos danos causados à Igreja da Arrentela pelo Terramoto de 1755 e respectivas obras de reconstrução, celebra-se, em 1763, um contrato notarial entre os procuradores dos arrais dos barcos de pesca da Arrentela e o mestre-estucador João Baptista Picardo Teixeira de Sousa, de origem minhota mas residente em Lisboa (Campolide), para a conclusão, num prazo de seis meses, dos trabalhos ainda era necessário efectuar na igreja.

Tais trabalhos incluíam a construção de um telhado de canudo cobrindo a nave e a capela-mor, seguida do caboteamento do tecto da nave com “madeira da Pederneira forte e segura”, a aplicação de fasquio, a realização dos estuques da nave e da capela-mor e dos estuques lisos das paredes da nave, da capela-mor e das sacristias, bem como a construção do coro-alto. Tanto o tecto da capela-mor como o da nave foram feitos por Picardo; mas o desenho do tecto da capela-mor foi fornecido pelos procuradores dos arrais, enquanto o desenho do tecto da nave foi da autoria do próprio Picardo. Disto resultou um tecto da capela-mor com uma composição em estuque mais convencional, com elementos iconográficos alusivos ao Santíssimo Sacramento, e um tecto da nave bastante invulgar, não só na composição como na sua mensagem iconográfica.

Os três grandes painéis do tecto da nave (que devem ser lidos no sentido do coro-alto para o arco da capela-mor) parecem querer transmitir uma mensagem. O primeiro painel inspira-se numa gravura feita pelos irmãos Klauber para ilustrar a obra de Franz Xaver Dor intitulada “Litaniae Lauretanae ad Beatae Virginis”, de 1750, e evoca o nome da Virgem Maria através do seu monograma representado por ramos de oliveira e de frases bíblicas e onde aparecem também duas figuras de músicos trajando à moda do século anterior, o século XVII (possivelmente para indicar o seu alto estatuto social), dirigindo preces à Virgem.

O segundo painel, no centro da nave, representa a Padroeira, Nossa Senhora da Consolação, rodeada por uma auréola dourada, tendo por baixo a cena de uma muleta (a embarcação tradicional da zona) com o mastro partido e completamente à deriva, a bordo da qual estão pescadores vestidos à maneira do século XVIII, cena ladeada por figuras orantes com trajes, novamente, do século XVII (como que prolongando a cena do primeiro painel e sublinhando o estatuto social mais alto dessas figuras).

No terceiro painel, junto ao arco da capela-mor, já não aparece a Virgem, mas apenas a auréola que a circundava no segundo painel e, por baixo, novamente a cena de uma muleta em dificuldades, com o mastro partido, com as figuras tanto no seu interior como a ladeá-la trajando já à maneira do século XVIII, possivelmente indicando que se tratava de pescadores e de mercadores.

Estes painéis, representando as embarcações em dificuldade, também se inspiraram numa outra gravura dos irmãos Klauber contida no livro de 1750 acima referido, em que uma embarcação com o mastro partido e a naufragar representa a Igreja, a comunidade dos fiéis que procura a consolação junto da Virgem, no caso, sob a invocação de “Nossa Senhora dos Aflitos”, e que lhe suplica pela sua salvação. Numa leitura que a investigadora apresentou como possível, esta mesma mensagem terá sido deixada pelos fiéis e pela sociedade da Arrentela no tecto da sua igreja como expressão da homenagem dos seus diferentes estratos sociais à sua Padroeira, Nossa Senhora da Consolação.

Os três painéis estão enquadrados pela representação arquitectónica de uma balaustrada, com bastante ornamentação, onde se alternam várias figuras alegóricas (entre as quais as virtudes teologais e as virtudes cardeais) com os quatro Evangelistas e com quatro Doutores da Igreja. A Doutora Isabel Mayer Mendonça terminou a sua conferência explicando como o tipo de representação das alegorias no tecto da Igreja da Arrentela por João Baptista Picardo lhe permitiu atribuir ao mesmo a autoria de algumas das obras em estuque da Sala das Batalhas do Palácio Fronteira, em Benfica.

Assim decorreu mais um riquíssimo Serão “Com Arte e com Alma”, evidenciando a Beleza e a Arte que a Fé de gerações e gerações de fiéis produziu na Península de Setúbal.

O 7º e último Serão “Com Arte e com Alma”, desta sua 2ª edição, realizar-se-á no próximo dia 08 de Maio, na Igreja de São Lourenço de Alhos Vedros, em torno do tema da azulejaria.

Mais informações em www.artesacra.diocese-setubal.pt e em www.facebook.com/artesacra.diocesesetubal

L. Silva

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14 de Abril de 2018