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Igreja em Rede: V Domingo de Quaresma “Eu sou a ressurreição e a vida” (Jo 11, 1-45)

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Homilia proferida por D. José Ornelas, na celebração do V Domingo da Quaresma, na Igreja de Nossa Senhora da Boa Hora, em Setúbal.

A Palavra de Deus que hoje nos foi dirigida, neste tempo de quaresma antecipa o sentido das celebrações pascais que se avizinham, nas quais celebramos a morte e a ressurreição de Jesus, manifestando o poder e o amor de Deus, que nunca nos abandona nas horas difíceis e dolorosas das nossas crises e nem mesmo quando a vida parece ter esgotado a sua energia e a morte parece pôr fim a tudo. É uma palavra que nos ajuda a lançar um olhar lúcido sobre o drama da pandemia que vivemos neste momento, mas, ao mesmo tempo, a acolher a presença revigoradora de Deus, na vida de cada um de nós e do mundo.

No Evangelho, Jesus confronta-se com a situação do luto de uma família amiga, ou melhor, de quem ele é amigo – “As irmãs mandaram dizer a Jesus: Senhor, olha que aquele que tu amas está doente” (Jo,11,3). E, depois da morte do amigo Lázaro, sem que Jesus tivesse chegado, cada uma das irmãs tem a mesma exclamação de incompreensão, para não dizer de censura: “Senhor, se tivesses estado aqui, o meu irmão não teria morrido…” (Jo 11,21.32). É como se dissessem: como é possível? És amigo dele, tens poder, como permitiste que isto acontecesse? Como é que não acorreste? Não te importa o nosso sofrimento? É também isso que dizem na multidão: “Então ele que abriu os olhos ao cego, não podia ter feito com que este homem não morresse?” (Jo 11,37).

Estas são questões que se encontram no coração e nos lábios de tantas famílias em luto em todo o mundo, nestes dias, também nas famílias dos que creem e que vêm partir os seus queridos ou sentem que a morte se aproxima. Deus está ausente do drama que vivemos? Será que não vê a nossa aflição e nos abandonou? Será que não passa simplesmente de uma ilusão a promessa da vida que nos faz?

A resposta a perguntas deste género não pode ser apenas uma explicação teórica. Podemos perguntar pelos responsáveis pela atual epidemia, podemos culpar políticos e grupos de interesse, ou fazer grandes discursos filosóficos sobre a morte e a vida, mas isso é só evitar envolver-se no drama concreto daquele que morreu e da dor da família.

Jesus propõe, não um princípio teórico, mas um percurso de vida: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem acredita em mim (quem adere a mim e ao meu caminho) viverá!” (Jo 11,23). Ele, o Filho de Deus imortal, veio assumir a nossa condição frágil e mortal: tornou-se próximo dos doentes, dos miseráveis, dos injustiçados e excluídos. Fez sua a fome das multidões, chorou a morte do amigo Lázaro e não ficou insensível ao choro da família dele. As lágrimas de Jesus são a manifestação do seu amor. Diz o Evangelho que Ele “se comoveu profundamente e ficou perturbado” e “chorou” (Jo 11,33.35). Toda a sua vida foi um estar próximo das pessoas, nas suas dores e dificuldades, como nas suas alegrias e festas. Fez de tal modo seu o nosso ser humano que partilhou o sofrimento extremo, a injustiça e uma morte atroz e humilhante na cruz. Ele está sempre próximo de quem sofre, de quem se aproxima da morte.

O que Jesus fez, em seguida, trazendo Lázaro para fora do túmulo, não é apenas o fim de uma história dramática com uma conclusão feliz. Significa algo de mais importante que comporta mais do que aquilo que a própria família pedia e podia esperar. Chamando Lázaro à vida, Jesus mostra a que ponto se sente ligado ao seu amigo e à sua família. Não só os acompanhou ao longo da vida, mas não os abandona nem na hora do confronto com a morte. Os gestos do resgate de Lázaro são bem descritos. Mandou retirar a pedra que separava os vivos dos mortos, passando por cima do medo e da repugnância perante a morte. A vida, para Ele, tem outros horizontes; é preciso estender a dimensão da existência àqueles que concluíram a primeira etapa da vida.

Por isso grita: “Lázaro, vem para fora” (Jo 11,43) e o “morto” saiu atado com as vestes de defunto, a ponto de Jesus ordenar: “Desatai-o e deixai-o ir!” (Jo 11,44). Jesus não só cancela a distância entre os vivos e os que são colocados no túmulo, como também realiza uma terapia da família e do próprio amigo. Ele tinha passado a vida a tornar as pessoas livres, autónomas e capazes de intervir neste mundo: libertava da cegueira, da parálise das mãos e dos pés, das mentes fechadas, do medo e da injustiça, da fome e do ódio que mata em vida e da guerra que destrói. Agora oferece mais: manda que libertem o amigo das amarras da morte e que o deixem ir, livre de todos os condicionalismos e limitações.

Afinal, Jesus não tinha chegado tarde ao funeral de Lázaro. Queriam que Ele viesse para acompanhar o amigo ao túmulo da saudade, da morte e do luto. Mas Ele veio foi libertá-lo do túmulo e da morte; libertá-lo definitivamente da sua radical fragilidade e entregá-lo à sua família de um modo novo. Por isso, o gesto prodigioso de Jesus não está apenas no fazer regressar Lázaro ao seio da família, como se se tratasse apenas da revivificação de um cadáver. Se fosse só isso, seria apenas adiar por mais uns anos uma morte inevitável. Lázaro veio a morrer pouco depois.

O gesto de Jesus não é apenas a revivificação do cadáver de Lázaro. Ele apresentou-se às irmãs de modo mais radical: “Eu sou a ressurreição e a vida” (Jo 11,25). A ressurreição não é apenas o regressar à mesma vida frágil que vivemos agora. É um alargar os horizontes da vida começada como seres humanos até à dimensão da vida de Deus. Esse é o caminho que Jesus vai abrir, através da sua morte e ressurreição.

Ele passara a sua vida libertando as pessoas de todos os males, compadecido das suas dores e semeando no seu coração a dignidade, a liberdade e solidariedade para cuidarem uns dos outros e construírem um mundo melhor. Não se poupou ao sofrimento nem à morte para abrir caminho a um mundo mais humano e a uma perspetiva mais alargada de esperança e de vida, que vai para além daquilo que cabe na existência presente.

Lázaro é o testemunho de que o amor e poder de Jesus não cessam com a morte, porque, com Ele, não se acaba nunca de existir, apenas se muda e alarga o modo de viver, na plenitude do poder e do amor do Pai do céu, que infunde em nós o seu Espírito. Por isso, Jesus diz que Ele “é” a ressurreição e a vida. Essa é a razão de ter vindo ao mundo em Belém, de ter vivido como homem, de ter traçado um caminho de transformação deste mundo, de se ter exposto sem medo, de ter passado pela morte, para que o seguíssemos na construção de um mundo verdadeiramente humano e aberto à totalidade da vida. Ele é verdadeiramente a ressurreição e a vida. Não é apenas o indicador da ressurreição; Ele é a ressurreição porque nos marcou com um gene novo, da vida imortal de Deus, através do seu Espírito.

Agora podemos voltar a colocar as perguntas das irmãs de Lázaro e as nossas: porque não estavas aqui quando o nosso irmão estava para morrer? Onde estás agora, nesta pandemia? Onde estás nos nossos receios e angústias?… E talvez estejamos prontos para encontrar uma resposta semelhante a algumas das mensagens que circulam nas redes sociais nestes dias.

Poderíamos escutar Jesus sugerir indicações deste tipo: procura-me nas urgências dos hospitais, de máscara e equipamento protetor, cansado de morte e arriscando a vida para que muitos possam viver; procura-me nos lares de idosos, acompanhando os mais frágeis nos serviços mais elementares e indispensáveis, resistindo ao medo, que seria pior que o próprio vírus; ando pelos laboratórios, buscando soluções novas para este novo vírus, e forjo no coração antídotos para outros vírus que ameaçam a humanidade; vou lavando estradas, juntando lixo e levando produtos para todos, para que estejam prontos para recomeçar, porque o vírus vai passar; podes ver-me também num padre ancião, que ofereceu o seu ventilador a um jovem para que pudesse viver. Já tive a alegria de o abraçar como a todos os que semearam na terra a semente da vida e do amor pelos outros. Eles parecem-se tanto comigo! E sou Eu que lhes estou preparando o banquete da Vida e estou contigo e com vocês todos que ficam em casa, quando vos apetecia sair, porque essa atitude é tão importante como a dos que estão na primeira linha. O vosso heroísmo é a paciência, de pé, orando e dando força aos que estão mais ativos. Vocês estão esperando e preparando a vida para além da crise, porque acreditam que Eu sou mais forte do que qualquer vírus e não vos abandono.

Estou convosco e é por isso que vos digo que ultrapassareis esta crise. Não gosto de epidemias nem de mortes, mas espero que este drama vos faça reconhecer a vossa comum fragilidade e a importância de todos e de cada um para vencer os desafios importantes da Terra que recebestes do céu. Espero que saibais colher a sabedoria e o fruto de tanto sofrimento e esforço, para forjar atitudes novas para um mundo novo.

Ao serviço deste projeto de um mundo novo, colocai todo o vosso saber, toda a vossa ciência, toda força do vosso coração, toda a capacidade de relação e de misericórdia… mas nunca vos esqueçais de levantar os olhos para o meu Pai e vosso Pai. Só assim o mundo humano conhecerá a sua verdadeira dimensão, abrindo-se ao Seu poder e ao Seu amor.

Não percais a confiança, não vos deixeis levar pelo medo. Não tenhais receio de vos empenhar com sabedoria e tenacidade nesta vida, mesmo com risco da morte. Eu venci a minha e a vossa morte, porque Eu sou a ressurreição e a vida!

D. José Ornelas, Bispo de Setúbal

 

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30 de Março de 2020