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Homilia de D. José Ornelas na Eucaristia da Ceia do Senhor: “Partilhar o pão e o vinho, corpo e sangue de Jesus, é deixar que Ele se faça nosso ser, configure as nossas atitudes e o nosso agir.”

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Hoje, celebramos a Ceia do Senhor, de modo muito reservado, na Sé e nas Igrejas paroquiais. Este facto deixa-nos saudade e faz-nos sentir a limitação que nos impõe o flagelo da pandemia e os cuidados necessários para evitar a sua difusão. Mas dá-nos também a oportunidade de experimentar a presença de Deus que não conhece barreiras nem obstáculos, para estar junto de cada pessoa, de cada família  e cada comunidade, em qualquer parte ou situação em que se encontre.

A ceia pascal que Jesus celebrou com os seus discípulos tem na sua origem uma situação semelhante à que estamos a viver, de grande sofrimento, dor e opressão e de mudança para a libertação, a dignidade e a vida.

A libertação a partir da família

A Páscoa está originalmente ligada à libertação da escravidão e da humilhação e ao caminho, sempre árduo de unir as pessoas e de criar uma pátria de liberdade e dignidade para todos. A nossa Páscoa tem como protótipo a libertação do povo de Israel da escravidão do Egito. Aí, Deus revela-se como salvador, libertador e defensor do seu povo. Este ato fundacional da fé, será sempre tornado possível por Deus, mas é realizado através de Moisés e dos que, nesta terra, foram rasgando o caminho para a liberdade e a dignidade. É assim que Deus opera. Ele transforma pessoas pelo seu Espírito; e pessoas transformadas transformam o mundo. A festa da Páscoa tem essa função de fazer com que aqueles que a celebram sonhem o sonho de Deus e se tornem libertadores e promotores dos seus projetos de justiça e de paz.

A libertação do Egito será perpetuada por uma festa anual, celebrada em cada família, como memorial recriador dos valores e da energia da fé no Deus libertador e criador da justiça, da fraternidade e da paz, mesmo nas situações mais dramáticas da história. Celebrava-se com a imolação de um cordeiro, com cujo sangue se tingiam os umbrais das portas, para que o castigo da peste não entrasse nas casas dos hebreus.

Tomemos hoje esta imagem como inspiração. Não é apenas para aconselhar os nossos comportamentos sanitários de contenção e de ficar em casa, como atenção ao serviço da vida. É isso e mais do que isso: a festa da Páscoa, celebra a vida que nasce na família, no amor, no cuidado mútuo, na transmissão da fé. Esta noite, ficamos em casa para não adoecermos e não difundirmos as doenças. Mas a referência à casa deve ser sempre um convite a não ir atrás daquilo que destrói a família, o amor e a vida. A família deve ser o lugar livre de violência, de ódio, de vingança. Tem de ser o refúgio do amor, da vida, da verdadeira liberdade e cidadania, para construção de um mundo novo.

A família que se reúne portas a dentro, não é uma família separada do mundo, mas também não se deixa andar em comportamentos que põem em risco a vida, o amor, a fé que a une às outras famílias. São estas famílias “em rede” que experimentam a libertação de Deus, que sabem resistir à opressão, à injustiça e à perda dos valores da vida… são elas que constituem o povo de Deus na humanidade.

A nossa Igreja precisa de refazer este sentido da interioridade da família e da sua responsabilidade no crescimento dos seus filhos, como filhos, como irmãos, como cidadãos e como filhos de Deus.

A ceia de Jesus, na grande família de Deus

Foi esta festa que Jesus celebrou com os seus discípulos – a sua nova família, proveniente de todos os povos da terra – dando-lhe um caráter mais radicalmente libertador.

Ele tinha passado a vida prodigalizando sinais de saúde, de reconciliação e de vida, e anunciando que é possível superar conflitos, guerras, egoísmo e ódios que destroem as pessoas, as famílias e a humanidade. Por isso, entregou-se totalmente à construção desse mundo e encarou, com amor e coragem, a recusa, a perseguição e a morte. Mas o seu projeto não acabou: Ele ressuscitou, dando novo sentido à libertação, e abrindo novo caminho  e novos horizontes à esperança e à vida.

Esta ceia resume tudo isso: a Páscoa de Israel, a ação de Deus na história, a vida de Jesus, expressão do amor sem limites do Pai do céu, a sua ressurreição que é a manifestação da libertação de Deus de todas opressões, dores e mortes. É tudo isso que celebramos nesta noite.

E tudo isto tem uma dimensão nova, que se estende a toda a terra. Já não se limita ao povo de Israel, ma abre-se a todos os povos e culturas, que compõem a humanidades e as nossa comunidades. Esta é a ceia libertadora da injustiça, do ódio, da guerra e de todas a tristezas e da morte.

A ceia do amor da partilha

Nesta ceia, Jesus oferece dois sinais fundamentais: a lavagem dos pés aos discípulos e o pão e o vinho, que Ele declara seu corpo e seu sangue, isto é, a sua vida feita dom até ao derramamento do sangue.

A lavagem dos pés é o sinal do amor feito serviço humilde, amoroso e atencioso, dos pais para com os filhos, dos filhos para com os pais, cansados ou anciãos; é uma deferência para com os hóspedes quando se acolhe; é um dever para com todos os que precisam, para que se sintam à vontade e se possam sentar à mesa da família, sem constrangimentos.

Por isso, lavar os pés é o sinal do bem acolher quem chega (emigrantes, pobres, exilados, diferentes de nós) e de bem tratar os que são de casa, criando o ambiente de lavar as quezílias e dificuldades, de ir ao encontro dos anseios e sonhos de cada um, de pensar primeiro neles do que em nós, para que a mesa esteja sempre preparada para nos sentarmos juntos, na festa da vida.

O pão e vinho, que Jesus declara seu corpo e sangue, são a expressão do dom total da vida pelos seus. Ele passara a vida multiplicando o pão para as multidões famintas, a palavra para os que não tinham caminho de existência, o perdão para os que se tinham separado ou foram excluídos, a energia que cura de todas as doenças do corpo e todos os vírus que contagiam os relacionamentos entre as pessoas.

Agora, Jesus mostra a fonte de onde brota toda essa força de renovação e de vida. Ele não deu apenas coisas; deu-se a si mesmo, como homem e Filho de Deus. Como homem deu tudo o que tinha, tudo o que era, até ao seu último suspiro, até à morte. Como Filho de Deus e dador do Espírito que não morre, Ele dá a vida que não acaba. Ele é a fonte dessa vida nova que cria uma nova maneira de viver, de servir, de esperar, como expressão do amor poderoso e recriador do Pai do Céu.

E isso é dado numa refeição. Jesus volta ao centro da tradição de Israel e da multiplicação do Pão: A fé cria cordialidade, encontro, partilha. O mundo não se salva pela força e pelas armas, mas pela partilha e pelo dom de si, em serviço e cordialidade. Essa é a receita da família que funciona, do mundo de justiça e da construção da paz. O resto é narcisismo fátuo e leva à destruição. Neste pão e neste vinho, é o próprio Senhor que se faz alimento, vida, energia e estilo de viver, de partilhar, de curar, de esperar, até à vida que não tem fim: porque Ele sabe e promete: “hei de voltar a beber desta taça no Reino dos Céus”. A Eucaristia que celebramos, não se implica somente aqueles que estamos nas nossas igrejas: estamos em rede com todos os que se deixam guiar pelo mesmo Espírito e com aqueles que, como Jesus, passaram pela morte, mas estão vivos com ele na plenitude da vida.

Mas, celebrara a Eucaristia não é apenas um rito: é pão para comer e vinho para beber. É uma realização atualizadora da presença do Senhor, uma reunião de irmãos como comensais e um desafio de vida e de missão. Isto é, partilhar o pão e o vinho, corpo e sangue de Jesus, é deixar que Ele se faça nosso ser, configure as nossas atitudes e o nosso agir, promotores de liberdade, dignidade, justiça, paz e esperança sem limites. À volta da mesa do Pai do céu, os que são tornados irmãos pelo Espírito e convidados pelo Senhor Jesus tornam-se uma nova família. São alimentados pelo pão e pelo vinho, partilhando entre eles aquilo que têm e são, e partilhando para fora o projeto de um mundo novo aberto ao poder e ao amor de Deus.

Este é o dinamismo transformador da ceia do Senhor que hoje celebramos. Acolhamos este dom, cada um em suas casas e nas suas famílias. Aceitemos o desafio desta ceia, para reconciliar-nos com Deus no nosso coração e uns com os outros, em gestos de afeto e de serviço. Embora hoje não possamos partilhar do mesmo pão e vinho consagrados, unamo-nos uns aos outros no mesmo Espírito, pois, assim, qualquer que seja a distância física a que nos encontremos, estaremos todos à volta da mesa do Pai do céu, unidos ao Senhor Jesus, na força e no amor do seu Espírito.

+ D. José Ornelas, Bispo de Setúbal

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10 de Abril de 2020