Liturgia de Sexta-feira da Semana Santa
Comentário do Padre Rui Gouveia, Reitor do Seminário de Almada e Diretor do Secretariado de Catequese
Toda a nossa experiência de adoração da Cruz, que hoje celebramos, faz concentrar o nosso olhar no corpo desfigurado de Jesus. Não olhamos para Ele com os olhos físicos, apreendendo apenas o mais imediato. Fazemos participar desse olhar os olhos da fé, que penetram no sentido mais profundo da realidade que se apresenta.
No relato do Evangelho que hoje é proclamado, o corpo de Jesus expressa visivelmente pelos seus sentidos físicos a sua Paixão e esta realidade sensível comunica espiritualmente, por sua vez, o sentido da nossa Redenção e de todo o género humano. Este é o método para hoje podermos em oração contemplar este mistério: partimos do corpo de Jesus e (e)levamo-lo até ao sentido espiritual, sem nunca perder de vista a nossa própria realidade humana; o visível requer o invisível para revelar o seu sentido. Assim, os sentidos físicos de Jesus podem ser como que janelas para nós Igreja da Sua Via Crucis.
O SENTIDO DO TATO
A narração do julgamento e do caminho até o Gólgota expõe com grande crueza as dores físicas de Jesus causadas pela violência da qual é alvo. Na Paixão de Cristo estão todos os doentes e todas as vítimas de violência física. Pessoas de todas as idades: não nascidos, crianças inocentes, adultos explorados, idosos desamparados. O Profeta Isaías diz-nos a propósito que “Ele suportou as nossas enfermidades e tomou sobre si as nossas dores” (Is 53,6). O sofrimento sentido no corpo de Jesus é afinal consequência das nossas próprias dores e não das d’Ele.
Neste drama, a fé consola, recordando que “pelas suas chagas fomos curados” (Is 53,5) e leva-nos ao pedido: Jesus, pela tua Paixão cura as nossas doenças, os nossos medos de ficar doentes e de morrer; Jesus, cura as nossas feridas de humilhação das violências a que fomos submetidos.
O VER
Provavelmente o olhar mais dramático que Jesus teve na Paixão foi para com Pedro após este o ter negado três vezes. O mais terno, todavia, seria para com a sua Mãe e o discípulo amado. Em ambos os casos, jamais faltou misericórdia porque “nós não temos um sumo sacerdote incapaz de Se compadecer das nossas fraquezas” (Heb 4,15). Hoje somos Pedro e somos o discípulo amado: O traidor que se deixando envolver pelo olhar sofredor de Jesus na Cruz é chamado ao arrependimento; e o discípulo que, por ser amado, recebe como sinal de esperança a nossa protetora, a Mãe da Redenção, a Mãe de Deus, a nossa Mãe.
Rezamos, então, dizendo: Jesus jamais deixes de olhar para nós e que jamais deixemos de sentir a Virgem Maria como nossa Mãe, especialmente aqueles que nestes tempos conturbados morrem sozinhos ou não podem chorar os seus mortos.
O SABOR
“Tenho sede” (Jo 19,28). Assim se manifestou Jesus no topo da Cruz perante a ausência de sabor e a secura da sua boca. Santa Teresa de Calcutá, numa das suas cartas dirigida às suas irmãs de congregação, pergunta: “Porque é que Jesus diz «Tenho sede»? O que quer dizer? […] «Tenho sede» é algo muito mais profundo que dizer «Amo-te». Enquanto não souberes lá no fundo de ti que Jesus tem sede de ti, jamais começarás a saber quem Ele quer ser para ti. Ou quem Ele quer que sejas para Ele” (Varanasi, 25/03/1993). Jesus quer que lhe demos sabor recebendo-O na vida, cumprindo a Sua vontade.
Pedimos: Senhor, venha nós o Teu Reino!
A ESCUTA
O estado de desidratação, os cortes na carne e os músculos doridos de Jesus não o distraem do mais importante, nem o impedem de continuar a escutar. No topo da Cruz, como Rei dos bons e dos maus, escuta as imprecações dos que O rejeitam e, em contraste, as súplicas dos aflitos. Ao pedido do bom ladrão “lembra-te de mim, quando estiveres no teu Reino”, promete “hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,42-43). Ao(s) outro(s) malfeitor(es) reza suplicando: “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34).
Pai, à minha súplica que constrói, responde sempre com a tua promessa do Céu. À minha voz que destrói, corrige e perdoa.
A FALA
Jesus quer comunicar a Sua salvação e, por isso, não cessa de falar até ao Seu último suspiro. Não fosse Ele a Palavra feita carne. Na verdade, Deus nunca deixa de se autocomunicar. Essa é a promessa que acompanha o Povo de Deus desde Abraão. A Palavra de Deus está presente e é eficaz. Se não a ouvimos é porque não nos calamos, é porque não temos fé.
Pai, ensina-nos a escutar o teu Filho, a Palavra Incarnada!
O SILÊNCIO
Após o último suspiro de Cristo, a vida consome-se no corpo do Filho do Homem, cessa a realidade sensível e faz-se silêncio. É quando lhe fazem trespassar o coração com uma lança. Ele, no Seu silêncio, como verdadeiro Deus, desce aos infernos… desce aos nossos infernos. É um momento de profunda comunhão connosco, com a nossa humanidade, com o nosso pecado, com a história de cada homem de cada tempo, que demanda uma atitude de abandono orante:
Jesus, neste caminho descendente, ensina-me a fazer silêncio, a calar os ruídos!
Senhor, que nesse nosso silêncio de verdade, essa lança, que faz brotar sangue e água do teu coração, mate o que não é Teu e tudo recapitule. Visita a solidão que afoga o sentido da vida, a acusação hipócrita e silenciosa que nos mata e mata os outros, o passado afogado dentro de nós e as deceções do caminho que nos consomem, a tibieza contra o pecado mascarada de caridade pastoral, a rebeldia perversa e obstinada não vencida que se mantém na sombra e longe da graça, o ativismo aparentemente acertado mas estéril da vida em graça, as fachadas esplendorosas que escondem a nossa insegurança, as falsas humildades que encapotam os nossos carreirismos e desejo de domínio do outro, a nossa caridade vazia que promove o nosso ego e despreza o necessitado, os nossos ensinamentos de fé bem elaborados mas despejados de Ti.
Jesus, ensina-nos a fazer silêncio contigo na Cruz!
Senhor, dá-nos uma vida nova nesse nosso silêncio de verdade, num caminho ascendente, pelo poder da tua Cruz.
Jesus, salva-me, liberta-me, renova-me!
Pela tua Santa Cruz dá-me fé!
Padre Rui Gouveia