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Páscoa 2020: Homilia de D. José Ornelas na Eucaristia da Ressurreição, no Domingo de Páscoa

A ressurreição não é apenas o fim feliz de uma história dramática, mas o começo de uma história nova, fundada num percurso novo, guiado pelo Espírito que guiou Jesus no seu agir neste mundo: “O Espírito do Senhor está sobre mim: porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres…” Aderir ao Senhor ressuscitado é continuar esse seu percurso de libertação da humanidade de todos os seus males até ao mal radical da morte. (D. José Ornelas)

 

Esta noite, celebrámos o grande anúncio da ressurreição do Senhor Jesus. Por isso a tradição da Igreja lhe chama “a mãe de todas as noites”, pois dela nasce uma humanidade nova, marcada pela morte e a ressurreição de Jesus. Por isso, este domingo, passou a ser para os cristãos o primeiro dia da semana e o Dia do Senhor (“domingo”, de “Dominus”, em latim, que significa Senhor).

Este dia do Senhor, que celebramos em cada domingo, assinala sempre, não apenas a morte, mas também a ressurreição de Jesus. Ontem meditávamos como a morte de Jesus representa o ponto de chegada de toda a sua vida nesta terra, marcada pelo dom do Espírito de Deus, que se traduz no dom de si próprio em favor dos outros.

É isso que carateriza a vida de Jesus, como Ele próprio afirma na sinagoga de Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre mim: porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.” (Lc 4,18-19). Toda a vida de Jesus foi passada a  fazer o bem, semeando saúde, alegria e esperança. Dedicou aos discípulos e a todos, especialmente aos mais carenciados, todo o seu poder e saber, todo o seu carinho e a sua esperança, toda a sua vida, mesmo a custo de aceitar a morte na cruz.

Mas, do alto da cruz, do seu peito trespassado pela lança da violência e do ódio, Ele fez brotar sobre a humanidade o Espírito do Pai, que o animara ao longo da vida. É um Espírito que não morre, porque Deus não está sujeito à corrupção e à morte. Jesus, um homem como nós, mas também Filho de Deus, não ficou prisioneiro da morte. Levantou-se do túmulo, como o primeiro da nossa humanidade, abrindo também a nós o caminho da vida que não acaba.

Agora sim, é possível entender a sua vida e o dom que nos traz. A sua morte não foi, como pensavam os discípulos, o triunfo dos violentos e poderosos, porque Ele superou a violência, passando por ela sem responder com violência; venceu os poderosos, porque eles não foram capazes de vencer a força do amor que se torna dom; superou a fatalidade do sofrimento e da morte, não porque fugiu deles, mas porque, rasgou, mesmo através deles, um caminho para a vida que não conhece ocaso.

Só agora, relembrando a vida de Jesus e deixando-se guiar pelo Espírito que brota do seu coração trespassado na cruz; só agora, a partir deste primeiro dia da nova humanidade, os discípulos começaram a entender porque é que o amor é mais forte do que o ódio, porque é que o serviço é mais precioso do que o ser servido; porque é que ser cuidador da vida e do mundo é mais importante do que ser predador daquilo que se encontra à nossa volta; porque é que dar a vida é superior a poupá-la e matá-la em proveito próprio.

Só agora começa a Igreja, a partir destes homens e mulheres que foram surpreendidos pelo anúncio do túmulo vazio de Jesus: “Não procurem entre os mortos Aquele que está vivo. Ressuscitou, não está aqui!”. Deixem de pensar que a morte de Jesus foi uma desgraça que pôs fim à sua missão e que acabou com o sonho que Ele vos tinha ensinado a sonhar. Não, não está nada acabado; está é apenas tudo a começar.

E, como é que vai começar? O anúncio da ressurreição começa pelo primeiro passo: “Ide dizer aos discípulos: vão para a Galileia! Lá o vereis!”. Ir para a Galileia significa reler a vida de Jesus a partir de onde tinha começado a sua missão: na Galileia. Isto é, viver a ressurreição tem de passar pela vida humana e pelos gestos de Jesus, até à cruz. A ressurreição não é apenas o fim feliz de uma história dramática, mas o começo de uma história nova, fundada num percurso novo, guiado pelo Espírito que guiou Jesus no seu agir neste mundo: “O Espírito do Senhor está sobre mim: porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres…” Aderir ao Senhor ressuscitado é continuar esse seu percurso de libertação da humanidade de todos os seus males até ao mal radical da morte.

E foi este o primeiro dia dos novos tempos: Estes homens e estas mulheres que estavam atemorizados, frustrados e resignados, levantaram-se, juntaram-se pela força do Espírito, perderam o medo, abriram as portas e começaram, também Eles, a ser cuidadores da humanidade, a tratar dos doentes, a curar feridas, a partilhar entre eles o pão, a ultrapassar barreiras e preconceitos, a anunciar a misericórdia universal de Deus que se estende a todos os povos… E acolhendo e celebrando sempre a presença do Senhor ressuscitado que os mantinha unidos, fraternos e solidários, para anunciarem ao mundo, com obras e palavras, que Deus é mais forte do que a morte, que o amor permanece mesmo para além da morte.

Por isso, a Igreja que nasce da morte e ressurreição de Jesus é uma Igreja missionária; não se fecha nunca num único povo, nem na comunidade das ideias já feitas e dos caminhos já trilhados. Não vai pelo mundo com propósitos de conquista e de exploração, mas de serviço e de cuidado de quem precisa. Mas tem um sonho: colocar ao serviço de toda a humanidade a energia desta manhã de Páscoa, lutando pela dignidade, a liberdade e a felicidade de todos e atendendo particularmente aos mais frágeis e excluídos, para que a todos chegue a vitória do Senhor ressuscitado, que abre novos caminhos, mesmo através das nossas crises e da nossa morte.

É com este Espírito do Senhor ressuscitado que se vencerá também a pandemia, com a colaboração de todos nós, com a ciência, a coragem e o dom dos profissionais de saúde e de todos os que fazem funcionar a sociedade; com o apoio e a contenção dos que impedem que o vírus se difunda; com nós todos, que vamos fazer os esforços necessários para que a vida volte às nossas cidades, às nossas escolas, às nossas fábricas, às nossas instituições, às nossas igrejas.

A pandemia vai passar, as nossas igrejas vão voltar a encher-se com as comunidades que celebram a sua fé e assim têm coragem de viver. A nossa Sé vai voltar a ser visivelmente a casa-mãe da nossa Igreja Diocesana; e havemos de celebrar juntos a vitória sobre este e os outros vírus que afligem a humanidade.

Mas é importante que não esqueçamos as lições desta crise, à luz da lógica da ressurreição:

A vitória sobre os vírus da humanidade deve fazer-nos reconhecer que todos somos frágeis, mesmo quando estamos juntos. Às crises vencidas vão suceder-se outras crises desafiadoras: vamos todos confrontar-nos com as crises os dramas do sofrimento e da morte, mesmo fazendo tudo bem, como aconteceu com Jesus. Essa consciência torna-nos humildes e abertos para colaborar com os outros e para levantar os olhos para além daquilo que sabemos e podemos, para o Senhor da vida, que nos guia e nos dá força.

Ninguém pode vencer sozinho, as crises da humanidade, das famílias, das suas dores. Todos somos importantes e temos de fazer a nossa parte, mesmo estando em nossas casas. O vírus mais insidioso é o do egoísmo, do isolamento, do ódio, da violência, que exclui e mata.

As nossa vitórias serão sempre curtas se forem apenas um adiar de crises. A vitória de Jesus, estendida a todos nós, é uma vitória sobre a morte e sobre todas as suas sequelas. É a abertura ao poder e ao amor do Pai do Céu, na vida que aqui levamos, até consumi-la como vela que se vai desfazendo em luz, até se fundir com a luz inapagável da vida que não tem fim. Sem a ressurreição que o caminho de Jesus nos propõe, os horizontes da vida humana serão sempre muito estreitos e curtos. Ele convida-nos a abrir os olhos à grandeza do amor e do poder de Deus.

É esta luz que brilha, no círio pascal que acendemos, nesta noite, nas igrejas, e nas velas que podemos acender nas nossas casas, e que são sinal da luz que o Senhor ressuscitado acende no nosso coração. Depois desta crise, o mundo pode ser diferente, nós podemos ser diferentes, podemos ser melhores. Que essa luz brilhe na nossa vida e que a possamos partilhar à nossa volta, até iluminar a terra, abrindo os nossos olhos à plenitude da vida a que o Senhor Jesus nos conduz com a sua morte e ressurreição.

+ D. José Ornelas, Bispo de Setúbal

Foto: Rui Minderico

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13 de Abril de 2020