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Páscoa 2020: Homilia de D. José Ornelas na Vigília Pascal

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“Ele nunca abandonará nenhum dos seus. Tem um GPS infalível que sempre nos vai encontrar no lugar onde estivermos.” D. José Ornelas

Na sobriedade e na contenção celebramos a liturgia desta noite de Páscoa, a mãe de todas as noites, aqui na catedral e nas igrejas, todas com muito poucos cristãos, mas sobretudo nas casas de milhares e milhares de famílias por todo o mundo. É nesta aparente dispersão, mas na comunhão da fé, que celebramos o ponto culminante da Páscoa: o anúncio da ressurreição do Senhor que dá fundamento à nossa fé.

Sem esta notícia e sem as consequências que dela derivam, a fé em Jesus Cristo, Filho de Deus e Senhor da Igreja, não teria qualquer sentido. Ele poderia figurar entre as personagens mais significativas da humanidade, poderia ser considerado um sábio, um pensador, um mestre, mas não seria o fundamento da Igreja, o fundador da esperança que veio trazer novos motivos de vida à humanidade e rasgar-lhe horizontes que vão para além daquilo que podemos viver e sonhar.

De facto, é isso que se depreende das próprias narrações do anúncio da ressurreição nos Evangelhos: os discípulos tinham seguido, entusiasmados, este Mestre e Senhor; tinham esperado que fosse Ele a transformar o mundo; tinham percebido que, com Ele, uma revolução estupenda estava em curso. Por isso aderiram ao seu chamamento: queriam ser parte desse projeto, pois achavam que em Jesus, Deus estava, de um modo novo, em ação no mundo.

Mas, com a morte de Jesus, vítima das autoridades sem escrúpulos e com tal rapidez que eles nem tinham podido esboçar qualquer resposta, ficaram tolhidos pelo medo da sua própria vida e trancaram-se em casa. Sem Jesus vivo – e se Ele não tivesse ressuscitado, não estaria para sempre presente com os discípulos – a Igreja (e cada um de nós) fica num gueto, fechada em si própria, com medo e sem perspetivas de futuro e de missão.

Além disso, cada um viu-se a pensar como salvar-se a si próprio e, pela manhã do terceiro dia, começavam a dispersar e a ir cada um à sua vida, como os dois que se puseram a caminho da sua casa em Emaús. Sem a ressurreição de Jesus, não havia mais razão para estarem juntos, não havia mais esperança de futuro… nunca teria havido Igreja.

Mais importante é que, com o desfazer-se desse grupo, no centro do qual estivera Jesus, esfumava-se o sonho e a esperança de um mundo novo, de outra forma de viver nesta terra e de sonhar um novo mundo, a que Jesus chamava “Reinado de Deus”, que ia para além mesmo da morte, coisa que eles ainda não tinham percebido bem o que era.

Tudo acabara de uma forma trágica, com Jesus crucificado e escandalosamente morto na cruz, diante de toda a gente, na festa da Páscoa. As autoridades proclamavam agora com gosto e gozo que, afinal, Jesus tinha sido rejeitado e castigado por Deus, que não passara de um pretensioso rebelde e de um herege, que tinha desafiado a tradição, aquilo que sempre se fizera, ousando anunciar uma nova maneira de entender a Deus e de realizar o seu projeto neste mundo e para além dele. Afinal, tudo não passara de um equívoco e, agora, aos discípulos só restavam recordações que, de doces e entusiasmantes, se tinham tornado amargura e desilusão. Sentiam o peso de não terem estado a seu lado como tinham prometido e a dor de um sonho que se tinha tornado pesadelo, do qual já não tinham forças para se levantar.

É no meio deste sofrimento e desta desilusão que a ressurreição de Jesus é anunciada. A Páscoa surge como luz no meio das trevas; Boa Notícia, nas situações mais trágicas e dolorosas; surpresa inesperada e incrível, para quem já não tinha nenhuma esperança e nenhuma força. A narração dos discípulos de Emaús desenha bem esta inversão de caminho e o renascer da esperança, da vida, do futuro.

É que, se Jesus ressuscitou, então, não é o amaldiçoado de Deus, como diziam as autoridades ou os indiferentes. Então é verdade o que Ele disse e anunciou sobre o Pai: sobre o seu poder, acima de todos os poderosos da terra; a sua misericórdia para com os que estão desprovidos do essencial para viverem e sobre o seu acolhimento dos que erram, dos estrageiros, dos que são postos à margem. É esta força que agora é comunicada e pedida aos discípulos.

Então, o programa de Jesus para este mundo tem validade. É à luz dele que os discípulos se reúnem, de novo, em torno do Mestre, a quem agora chamam “o Senhor”. Mas reúnem-se de uma forma diferente, pois Ele está sempre acompanhando cada um deles, onde que quer se encontre. Já não o detêm nem muros nem distâncias: Ele é o Senhor Ressuscitado, presente em toda a Igreja, onde quer que dois ou três estejam reunidos em seu nome.

Está presente, também hoje, aqui na Sé da Diocese e nas igrejas onde se celebra, com poucos cristãos, mas igualmente em cada uma das nossas famílias, nos hospitais ou nos lares, onde se curam os doentes e onde Ele também vem acolher nos seus braços aqueles que fecham os olhos neste mundo para fazê-los contemplar o mundo novo que preparou para eles na glória do Pai. Ele nunca abandonará nenhum dos seus. Tem um GPS infalível que sempre nos vai encontrar no lugar onde estivermos. E fará isso através daqueles que se deixam transformar e guiar pelo seu Espírito, através de cada um e cada uma de nós, que será instrumento da sua nova presença no mundo.

É essa a força nova que está no  mundo. Deus não é um Deus distante: tornou-se presente entre nós, em Jesus. Como homem Ele fez da sua vida um dom a toda a humanidade, até à morte mais humilhante, pois não teve medo de descer aos calabouços dos dramas humanos. E, quando parecia que tudo estava terminado, do seu coração trespassado brotou o sangue e a água, o dom da vida e do Espírito que transforma o coração dos que creem, fazendo-o bater ao ritmo do seu coração.

A morte e ressurreição de Jesus e o dom do Espírito Santo são a base do mundo novo, que começa na transformação desta terra e se projeta na vida sem ocaso, onde nos precedeu o Senhor, na sua ressurreição. Esse mundo começa, para cada um de nós, com a aceitação do Evangelho e com o dom do Espírito, no batismo.

É por ação desse Espírito que cada um de nós e toda a Igreja se comprometem na mudança da sociedade, na promoção da justiça, da solidariedade, no acolhimento dos mais débeis e dos excluídos e testemunhando a esperança de um mundo novo que só de Deus pode vir. Essas são as marcas do Espírito do Senhor ressuscitado no meio dos nós.

É por isso que, nesta noite se renovam as promessas do batismo, com a atualização da Páscoa do Senhor e dos seus frutos de vida, nesta terra e junto de Deus, na eternidade. Depois, vamos celebrar também a Eucaristia que é a presença contínua do Senhor que reúne os seus e prepara para eles o banquete da vida. Assim se celebra verdadeiramente a ressurreição do Senhor.

Nesta vigília, estes dois pilares do memorial da ressurreição do Senhor serão celebrados de maneira contida. Devido aos condicionalismos da pandemia, renovaremos as promessas batismais, mas não haverá batismos, nem se abençoará a água batismal para ser aspergida. Por isso, quero dirigir uma palavra materna da Igreja aos seus catecúmenos: são largas dezenas, graças a Deus, os que estiveram a preparar-se para receber o batismo na Páscoa. A mãe Igreja alegra-se convosco e dá-vos as boas-vindas na casa de Deus. Havemos de realizar convenientemente o vosso batismo, com a presença das vossas comunidades. Mas, da celebração desta noite santa, recordai-vos sempre que sereis batizados na Páscoa da morte e ressurreição do Senhor, para viverdes uma vida nova de ressuscitados com Ele.

Também, na Eucaristia, como tem acontecido nas últimas celebrações, não será possível a comunhão aos que, em suas casas, seguem esta transmissão. Mas lembrem-se todos, como já tenho dito noutras ocasiões que, para o Senhor ressuscitado não existem muros nem distâncias: onde estiverem dois ou três reunidos em seu nome, Ele estará lá no meio deles. Uni o vosso coração aos irmãos e irmãs de toda a Igreja e estareis em comunhão com o Senhor, que passou pela morte, mas ressuscitou e acompanha sempre aqueles que foram assinalados com o dom do seu Espírito.

+ D. José Ornelas, Bispo de Setúbal

 

Foto: Rui Minderico

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13 de Abril de 2020