Testemunho de Raquel Matias, enfermeira.
2020 é o ano internacional do enfermeiro, que assinala 200 anos do nascimento da fundadora da enfermagem moderna, Florence Nightingale. Esta mulher de garra e sacrifício é conhecida como a “dama da lamparina” por cuidar e velar os doentes durante a noite, visitando-os com uma lamparina.
Assim, 2020 avistava ser um ano fantástico, profissionalmente, festejando este grande feito e relembrando a profissão que Nightingale fez crescer.
Mas Deus veio mostrar-nos que a Sua terra tinha de regenerar e os Seus trabalhadores de aprender a ver com o coração.
É assim que vejo o SARS-CoV 2. Como pessoa e como Cristã.
Como profissional de Saúde e Enfermeira numa Unidade de Cuidados Intermédios e Intensivos, e mais recentemente numa Unidade de Covid, a presença de Cristo Ressuscitado (que já era sentida todos os dias) tomou ainda mais significado.
Os dias passaram a ser mais compridos, mais sós, com uma exigência maior e ainda mais rigor para nós profissionais. Muitas vezes sinto-me completamente vazia quando saio da unidade, muito para além do suor, da fome, da dor… vazia. Resta-me Cristo que, por intermédio de pessoas próximas, me vai falando e fazendo chegar a sua mensagem de amor e esperança e de que não desiste desta sua serva.
Mas para as pessoas que contraíram o vírus, tudo passou a ser muito mais complicado. Imagino o que é estar-se doente (com ou sem o vírus) e não receber aquela visita da pessoa que mais amamos, mas apenas imagino: porque quem viveu e vive, deve ser de uma solidão tamanha.
É aí que nós entramos: aqueles que 24h sob 24h lá estão, enfermeiros, médicos, auxiliares de ação médica, auxiliares da alimentação, auxiliares de limpeza, técnicos de diagnóstico e os colegas fisioterapeutas.
Em equipa, porque só em equipa é que um hospital avança, vamos cuidando dos corações daqueles que estão internados quando entramos nas suas áreas contaminadas, e também dos corações uns dos outros, pois nas dificuldades somos, ainda mais, um só.
Na unidade, em específico, cuidamos das pessoas mais debilitadas que precisam de controlo hemodinâmico ou de pessoas ventiladas para as quais somos a última linha, a sua última esperança. Na recuperação sentimos uma vontade imensa de “gritar por vitória”, de agradecer e contar as boas batalhas da vida, o melhor de tudo é vermos alguém que há semanas não sabíamos o que lhe aconteceria, e com ajuda de todos (incluindo a do Altíssimo) saem pelo próprio pé a amar a vida em cada segundo que nela consta. Na morte, choramos por vários motivos, choramos porque nos ligamos a quem cuidamos, choramos porque de alguma forma fracassamos, choramos porque à nossa frente está o amor da vida de alguém e o que vem a seguir é profundamente doloroso para todos.
Imagino também a desesperança dos familiares, que em casa, aguardam por notícias nas quais tinham que acreditar, porque não conseguiam ver os seus entes queridos. Imagino aqueles corações apertados. Mais tarde, quando recuperam parcialmente, conseguimos contactar com as famílias pelas novas tecnologias e que alegria são aqueles 5 minutos a que nos dedicamos.
Estes dias vieram relembrar-nos da fragilidade da condição humana mas também de que temos que aproveitar melhor o nosso tempo neste planeta para agradecer a Deus as pessoas que nos acompanham e que amamos. Olhar e cuidar da “casa comum” com um novo olhar, com nossa missão, tem de passar a ser uma nova prioridade. Assim, e no fim de tudo isto, não seremos os mesmos, seremos melhores.
Somos parte integrante da sociedade e temos responsabilidade perante os outros. Por isso cheguemo-nos à frente para abdicar daquilo que é “meu” para conseguirmos cuidar daquilo que é “nosso” e tudo correrá bem.
Que sejamos sempre aqueles que levam a luz ao coração daqueles que mais precisam, com ou sem lamparina.
Assim, se este não é o Ano Internacional do Enfermeiro, de que será? Que mais podíamos pedir quando nos chamam em missão para fazermos o que mais gostamos de fazer? Saber sentir para saber dar, eis-me aqui Senhor, as minhas mãos são e serão sempre Vossas.
Raquel Matias