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Liturgia: Homilia de D. José Ornelas no XVI Domingo do Tempo Comum

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No XVI Domingo do Tempo Comum, D. José Ornelas presidiu à Eucaristia domincal na Igreja de Nossa Senhora da Esperança, Paróquia de Quinta do Conde.

As leituras que hoje proclamamos na liturgia da Igreja trazem-nos uma mensagem, de profundo conforto e esperança e, ao mesmo tempo, de enorme desafio e responsabilidade.

A primeira leitura tirada do Livro da Sabedoria (Sab 12,13-19) dá o tom da mensagem, centrando a nossa atenção no coração de Deus e no seu modo de agir. Ele não é simplesmente um juiz que dá recompensas aos bons e castigos aos maus. Se assim fosse, ninguém de nós teria a presunção de se apresentar como inocente diante dele, pois todos conhecemos as nossas fraquezas e, por vezes, mesmo maldades, que provocam sofrimento, dor e destruição nas pessoas e no mundo à nossa volta.

O que nos diz este texto da Escritura é que Deus é clemente e cheio de misericórdia, mesmo para com aqueles que procedem mal. Por vezes, entender a Deus deste modo provoca-nos incompreensão, revolta e até dificuldade de acreditar. Quando nos confrontamos com a corrupção de gente sem escrúpulos; com a violência gratuita e a injustiça dos poderosos contra os inocentes e as crianças; com a ganância arrogante que destrói povos inteiros e os leva à miséria… Perguntamos, muitas vezes: E Deus, onde está? Por que razão não age e não castiga? Será que Ele fica insensível diante do mal que se pratica contra os inocentes? É bom fazer estas perguntas, pois isso significa que somos sensíveis e sabemos distinguir o bem do mal, que não cruzamos os braços diante do sofrimento dos mais débeis.

Mas o autor do livro da Sabedoria convida-nos a um olhar mais elevado e mais sábio:

Vós, o Senhor da força, julgais com bondade e governais-nos com muita indulgência, porque sempre podeis usar da força quando quiserdes. Agindo deste modo, ensinastes ao vosso povo que o justo deve ser humano e aos vossos filhos destes a esperança feliz de que, após o pecado, dais lugar ao arrependimento.”

Duas coisas importantes, diz este texto: primeiro é que Deus é poderoso, acima de qualquer pessoa e de qualquer juiz ou governante desta terra. Mas a força de Deus não é para atemorizar e destruir, antes é fundamento de paz e de vida. Se não castiga não é por falta de poder, mas porque tem um coração de Pai, mesmo para aqueles que falham. Em segundo lugar, afirma que, deste modo, ensina a quem se deixa guiar por Ele, que o justo não pode ser simplesmente juiz, mas que deve ter um coração humano e capaz de ter misericórdia daqueles que falham, como Deus tem para com ele.

Isto é: Deus é como um Pai e uma mãe que educam os seus filhos, com ternura feita de justiça, sabedoria e paciência, esperando que cresçam, que entendam, que aprendam com os erros que inevitavelmente vão cometer. E, sobretudo, pretendem que lhes fique no coração a recordação e a imagem do amor em que foram gerados e educados, que os fez ultrapassar quedas e erros e crescer como pessoas livres, felizes, capazes de ternura e de recuperação do mal que se encontra no mundo.

 

Quando falo deste tema da misericórdia de Deus lembro-me sempre de uma senhora viúva e pobre que conheci numa paróquia nos arredores de Lisboa e que procurávamos ajudar a partir da comunidade: a Tia Maria. Tinha dois filhos, os quais andaram na droga e foram gastando nisso tudo o que a pobre senhora tinha. Esperavam o dia de ela receber a mísera reforma, para lhe caçarem o dinheirinho para a droga. Um dia, ela chegou à igreja especialmente aflita a dizer: “Já não sei o que fazer. Hoje, os meus filhos fizeram o pior: levaram as últimas três cadeiras e a pequena mesa que tínhamos na cozinha e foram vender para comprar droga.” Eu fiquei indignado e disse: “Ó Tia Maria, então eu já não lhe disse, mais do que uma vez, para mudar a chave da porta da casa, para impedir estes atentados?” Ela levantou para mim os olhos desolados e disse: “Ó, senhor padre Ornelas! E eu posso fechar a porta na cara dos meus filhos?” Eu calei-me, envergonhado, da justeza das minhas razões que eram tão desajustadas para aquela mãe. Nesse dia, entendi muitas coisas sobre o coração dos homens e sobre o Coração de Deus. Para o coração de mãe da Senhora Maria, o recurso à justiça simplesmente não resolve o seu problema e o “problema” dela é o amor aos seus filhos, mesmo que sejam velhacos e profundamente injustos. Eles já nem estavam em condições de entender o amor da mãe, mas ela tinha um amor tal que cobria até a falta de amor deles.

É isso que nos mostra a parábola do trigo e do joio (Mt 13,24-43) que nos conta Jesus no Evangelho de hoje. O joio é uma planta algo parecida com o trigo e que nasce com ele. Um olhar atento percebe a diferença ainda quando ambas as plantas são pequenas, mas é quando chega a hora de dar fruto que se vê a diferença: o joio não dá nada que preste para a finalidade daquele campo. Apenas ocupa a terra e causa dano ao trigo, enquanto este dá o pão a quem precisa.

Este agricultor, porém, não embarca na solução dos seus colaboradores de arrancar o joio, do mesmo modo que a Tia Maria, viúva e pobre, mas rica de coração, não apreciou a sugestão do Padre Ornelas de pôr os filhos fora de casa.

Por outro lado, Jesus não confunde nunca o trigo com o joio e avisa que, no tempo de fazer contas, isto é, de avaliar o valor de uma vida, o joio é palha para queimar, desfeita em fumo, enquanto o trigo é colhido e dará para matar fome e gerar vida. Os que cometem o mal, a corrupção e a injustiça destroem a vida à sua volta e destroem-se a si próprios. Podem ter alguma aparente vantagem passageira, mas, sem Deus, ficam limitados à sua insuficiência, afogados no mal que geraram.

Essa é a mudança de perspetiva de Jesus. Ele veio para um mundo que não é perfeito, para uma humanidade cheia de sofrimento, de injustiça, de exploração, guerra e morte. Ao longo da história, os homens revoltaram-se justamente contra estas situações que destroem a sociedade e criaram tribunais para punir e eliminar os prevaricadores, ou fizeram revoluções para acabar com tiranos e exploradores. Jesus, como a Tia Maria, acha que isso só não chega; que é preciso mudar a perspetiva. Todos somos frágeis pecadores e Ele começou por colocar-se ao lado deles, em vez de os desprezar e excluir. É do coração que nasce a verdadeira revolução, a verdadeira liberdade, a verdadeira justiça, que muda o modo de olhar os outros e Deus conta com todos para ultrapassar o mal que existe na sociedade.

O perdão e a misericórdia de Deus não são atos de insensibilidade ou de irresponsabilidade. É o sugerir de outro paradigma, de outro sonho, de outro caminho. Não é assim que fazemos nas nossas famílias? Se fossemos todos a arrancar pela raiz a imperfeição do marido, da esposa, dos filhos, dos pais… acabaríamos todos no lixo e acabaria a família que procuramos e que é possível construir com realismo, reconciliação e amor.

Nunca percamos a capacidade de discernir o bem e o mal; nunca pactuemos com a injustiça, a corrupção, a exploração e o abuso dos inocentes. Mas não nos deixemos levar simplesmente pela justiça da punição e da vingança. Quando a sociedade condena à morte um culpado, está amputando um dos seus membros; quando alguém perdoa, reconcilia e reabilita, está equilibrando os pratos da balança da justiça e está semeando um mundo mais digno, humano e com futuro. É assim que faz connosco o Pai do céu.

 

E este sonho é possível? Jesus acha que sim e deu o exemplo. Não ficou somente a ver e a esperar, mas deu literalmente a vida para afirmar que é preciso começar um modo novo de lidar com quem se deixa enredar nas teias do mal. Ele, o Filho de Deus Todo-poderoso, inocente, deixou-se excluir e condenar para não excluir, nem sequer os que o condenaram. Deixou-se morrer para não matar e, à hora da morte, ofereceu, de graça, o paraíso a um ladrão e assassino que, na última estação desta vida, apanhou um comboio novo para a vida que não tem fim.

É possível sonhar assim? Na segunda leitura, São Paulo acha que sim (Rm 8,26-27) e dá-nos uma razão muito forte. Porque Jesus nos deixou o seu Espírito, a força, a sabedoria e o amor do Pai do céu, que é semente desse sonho de vida na justiça e na paz, para além mesmo dos limites da existência nesta terra. Esse Espírito é, em nós, como que um “canal dedicado” para estarmos ligados a Deus, para poder escutá-lo e falar-lhe. Assim somos guiados na construção dessa nova humanidade, a partir da nossa inteligência e coração.

No Evangelho Jesus diz que o joio é uma semente que vem do inimigo. É a semente do mal, do egoísmo, da vingança, da violência e da injustiça. Essa semente anda por aí e também entra na nossa vida, na nossa família, na Igreja e na sociedade, provocando muito sofrimento, destruição e morte. Mas temos também outra semente, outro conselheiro, outro Mestre que é o Espírito do Senhor. Dêmos-lhe espaço na nossa vida, permitamos que Ele nos fale; usemos o canal de comunicação que Ele põe à disposição, na escuta da sua Palavra, na oração, na vida da Igreja de que somos parte, naqueles que Ele vai colocando no nosso caminho. Vamos aprendendo e treinando esse novo mundo, segundo o Espírito, na nossa forma de nos tratarmos, a começar na nossa casa, no nosso trabalho, na nossa comunidade.

É possível construir um mundo novo, porque o Espírito de Deus está connosco. Deixemo-nos acolher e guiar por Ele!

+ D. José Ornelas, Bispo de Setúbal

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21 de Julho de 2020