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Atalaia/Montijo: Festa Grande “diferente e contida” mas com “memória viva”

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D. José Ornelas presidiu à Eucaristia solene da principal romaria dedicada a Nossa Senhora da Atalaia, no adro do santuário mariano.

O prelado incentivou os presentes a serem “círios peregrinantes neste mundo” e realçou o valor cultural e espiritual da festa, cujo sentido a pandemia ajudou a recentrar.

“A festa religiosa tem um fundamento espiritual, que se entrelaça com a realidade da vida de quem peregrina e se reúne” defendeu o Bispo diocesano, salientando que “é muito importante não perdermos as nossas memórias, os nossos valores, as nossas celebrações, que modelam a nossa identidade social e de povo, na sua relação com a fé que está nas suas raízes.”

Por outro lado, referiu D. José Ornelas que “a fé não é um museu do passado”, que, em conjunto com a cultura, permite “revisitar a memória viva, para criar vida nova e abrir novos horizontes”.

 

Na homilia, o prelado explicou o Evangelho proclamado, que relata o primeiro milagre de Jesus, nas Bodas de Caná, na qual “transforma a água dos ritos vazios em vinho de alegria amor e vida” graças a um alerta de Maria.

“Maria chama a atenção de Jesus para a falsidade de uma atitude familiar, social e religiosa que não tenha por base os valores fundamentais da vida, do amor, da dignidade, da justiça, que Deus providencia para todos”.

Para D. José Ornelas, na contenção da Festa Grande deste ano, “Maria, como em Caná da Galileia, há dois mil anos, continua a chamar a atenção de todos nós” para que a festa seja “festa de vida, de encontro”.

Num lugar a que historicamente a população recorria em tempos de doenças, o Bispo de Setúbal pediu a intercessão de Nossa Senhora para nos ajudar a vencer a pandemia, exortando-nos a olhar “o rosto acalentador e dinâmico de Maria que produz verdadeiro encontro de pessoas, que modela a cultura da solidariedade, na justiça e na dignidade”.

 

D. José Ornelas aproveitou a ocasião, na presença das autoridades locais, para elogiar o trabalho das instituições civis e das forças de segurança que “neste tempo de maior dificuldade” têm sido “a expressão de uma sociedade que procura cuidar”.

O Santuário da Atalaia, no Montijo, decidiu manter a realização da “Festa Grande”, cingindo a programação aos momentos religiosos, com oração do Ângelus, recitação do terço e celebração da Eucaristia, cumprindo as normas sanitárias vigentes.

O Reitor do Santuário, Padre Miguel Aguiar, acolheu todos os presentes, referindo que a Atalaia, com cerca de 800 anos de história, sempre foi um ponto de atração para peregrinos, especialmente “em tempos de peste, em que o povo sofre com doenças”.

O presbítero elogiou os peregrinos que “não têm medo” e que pela sua coragem demonstram o seu “testemunho de fé e de amor a Nossa Senhora”, sabendo viver e estar com prudência e sabedoria.

O Santuário de Nossa Senhora da Atalaia foi durante séculos um dos principais locais de peregrinação do sul do país, muito em particular devido aos círios que acorrem à Atalaia.

De recordar que a Festa foi candidata no concurso “7 Maravilhas da Cultura Popular”, tendo sido a vencedora regional.

JM

 

Homilia na “Festa Grande” de Nossa Senhora da Atalaia

Estamos a celebrar, como cada ano, a “Festa Grande” de Nossa Senhora da Atalaia. É uma festa antiga, que acompanha o nosso povo desde há muitos séculos, dando vida e formando a fé e a cultura de sucessivas gerações e tornando-se centro de atração dos círios, oriundos das vizinhanças, da península de Setúbal e de toda a bacia do Tejo.

Este ano, porém, celebramos a Festa Grande de uma forma diferente e contida, em contraste com as romarias e o arraial dos anos passados. E todos sabemos a razão de ser desta contenção. Trata-se de resguardar o dom primeiro de cada ser humano que é a vida.

Celebrar em tom menor, significa acompanhar a situação do país e do mundo. A festa religiosa tem um fundamento espiritual, que se entrelaça com a realidade da vida de quem peregrina e se reúne. E a vida nunca é igual: muda de ano para ano, de época para época. Assim, a festa também foi acompanhando o povo destas cercanias ao longo dos séculos, através da fé que move o povo de Deus.

Isso é o que se chama cultura. A fé e a festa criam cultura. Tem raízes no passado, mas não fica apenas nessas raízes da origem: adapta-se, ganha novos contornos e expressões, em cada tempo e lugar, para permanecer fiel àquilo que celebra, festeja e transmite. Se perder os valores fundacionais, perde a sua identidade; se ficar petrificada no seu passado torna-se peça de museu, interessante para narrar a história do passado, mas não para fazer história, no presente e no futuro.

E esta é a primeira palavra que queria deixar hoje aqui, sobre a festa e a fé que a move, e que ganhou até dimensão mediática com o concurso das sete maravilhas de que fez parte este ano. É muito importante não perdermos as nossas memórias, os nossos valores, as nossas celebrações, que modelam a nossa identidade social e de povo, na sua relação com a fé que está nas suas raízes.

Por outro lado, a fé, não é um museu do passado. As memórias são trampolim criativo para perceber o presente e construir o futuro, com a força das origens, mas igualmente com a coragem de novas formas, novas linguagens, novos saberes e novos horizontes. A fé, a cultura e sobretudo a cultura da fé é, pois, um revisitar a memória viva, para criar vida nova e abrir novos horizontes. A fidelidade à tradição não é o imobilismo nem o regresso ao passado; é partir do dinamismo das origens para dar vida ao presente e lançar o futuro.

As leituras de hoje, particularmente o Evangelho, lançam uma grande luz sobre esta festa. O evangelista São João narra-nos aquele que apresenta como o primeiro sinal do mundo novo, dado por Jesus, numa boda, uma festa de casamento: “celebrava-se uma boda em Caná da Galileia e a mãe de Jesus estava lá. Jesus e os seus discípulos também foram convidados para a boda”. Não era especificamente uma celebração num templo, não era apenas uma celebração religiosa, mas estava cheia da primeira espiritualidade que é o sentido do amor e da vida. Maria, a Mãe de Jesus (o seu povo) era parte desta festa, que celebrava o centro da vida: os noivos, uma nova família, a perspetiva dos filhos, a alegria de todos. São as pedras fundamentais da vida e da sociedade. Jesus também tinha sido convidado para esta festa com os seus discípulos. Ele vem, com a sua comunidade, para o meio deste mundo. Maria é parte deste povo, desta humanidade; Jesus e os discípulos (convidados) são a novidade que está a chegar.

A festa parece estar a correr bem, toda a gente está contente, a comer e a divertir-se, mas Maria, uma mãe com sensibilidade especial, nota que esta festa da vida está a ponto de descambar e de acabar em frustração e tristeza e vai dizer a Jesus: “repara: não têm vinho”. Não é apenas a falta de vinho e a atrapalhação do novo casal e da sua família que estão em causa. O vinho, na tradição de Israel, é símbolo da abundância, da alegria e do amor. Esta mãe, portadora da tradição, dá-se conta que a festa está montada e até parece funcionar, mas dentro falta o essencial. A barraca está lá, mas está vazia: há arraial e barulho, mas o amor, a felicidade, a dignidade e verdade daquilo que se celebra, está em falta.

Maria chama a atenção de Jesus para a falsidade de uma atitude familiar, social e religiosa que não tenha por base os valores fundamentais da vida, do amor, da dignidade, da justiça, que Deus providencia para todos.

Há recipientes enormes para a água dos ritos de purificação, que deveriam lançar as bases para a verdade da festa, mas os recipientes estão vazios e, além disso, a crise não simplesmente de ritos, se não tem correspondência na vida.

Jesus transforma a água dos ritos vazios em vinho de alegria amor e vida, apontando para o momento em que dá a vida, e derrama o Espírito de Deus sobre a humanidade, no alto da cruz.

Aos pés da cruz, Maria e os discípulos aprendem fundamentalmente duas coisas: a primeira é que a Festa tem de passar dos ritos para vida, para novas formas de se relacionar, com base na justiça, na solidariedade e no amor. Em segundo lugar, que não se perca o relacionamento com Deus, pois Ele é que é a única possibilidade de dar sentido a esta vida e a esta sociedade, abrindo-a a novos horizontes, mesmo para além das dificuldades, das pandemias e da morte.

Na contenção da Festa Grande deste ano, Maria, como em Caná da Galileia, há dois mil anos, continua a chamar a atenção de todos nós para o sentido daquilo que fazemos e da forma como organizamos a festa, para que não seja apenas uma barraca barulhenta, mas seja mesmo festa da vida, do encontro.

Que seja uma festa de círios, de romarias que peregrinam para o santuário, o centro da tradição. Mas que aí encontrem o rosto acalentador e dinâmico de Maria que não nos deixe ficar fechados no santuário e no passado, mas que faça a festa descer à rua, às nossas cidades e famílias, que produza verdadeiro encontro de pessoas, que modele a cultura da solidariedade, na justiça e na dignidade. Que caminhe e acompanhe a humanidade nos seus dramas e nos seus sonhos.

Que nos faça seguir Jesus, o verdadeiro Mestre da festa da vida, dizendo a todos os que servem esta festa, na Igreja, nas instâncias da autoridade e da sociedade, o mesmo que disse aos que serviam na boda de Caná: “Fazei tudo aquilo que Ele vos disser”. Porque é Ele que nos ensina a fazer da vida um dom para construir um mundo mais fraterno e humano, sob o olhar de amor e misericórdia do Pai do céu.

Hoje, pois, deixemos que o sentido desta festa entre no nosso coração, sem esquecer os dramas que nos rodeiam. Celebremos a festa na força das suas raízes e levemos para a vida a visão e o apelo que ela nos traz. Que Maria interceda por nós e nos ajude a vencer esta pandemia, com o seu olhar crítico, mas igualmente diligente e misericordioso. Para que a ninguém falte o necessário, em bens materiais, em relações corretas e justas para fazer festa e para sonhar um mundo melhor. E levemos sobretudo o seu convite de Mãe sábia e cuidadosa que nos aponta para Jesus seu Filho: “Fazei tudo aquilo que Ele vos disser”.

+ D. José Ornelas, Bispo de Setúbal

 

7 Maravilhas da Cultura Popular: Festas em Honra de Nossa Senhora da Atalaia

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31 de Agosto de 2020