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Fátima: Homilia de D. José Ornelas na vigília de 12 de outubro

2020-10-12_Proc_Velas-Fatima-banner

Estamos a concluir, hoje e amanhã, o ciclo das grandes celebrações de Fátima deste ano, fazendo memória da manifestação de Nossa Senhora a três pequenos pastorinhos, que teve lugar durante um tempo de pandemia, de grande violência, sofrimento e guerra. Os dois irmãozinhos, Francisco e Jacinta, acabaram mesmo por ser vítimas dessa terrível epidemia. A atual contenção da presença dos peregrinos no Santuário, nesta peregrinação de outubro é também sinal claro das limitações e condicionalismos que atingem o mundo inteiro, com as nefastas consequências que todos conhecemos e que atinge sobretudo os mais frágeis.

É bom ter sempre presente esse contexto histórico – das origens de Fátima em 1917 e de hoje – para entender a atualidade que traz para os nossos dias a Virgem Maria neste lugar e na condição em que vivemos. A palavra de Deus que acabámos de escutar apresenta-nos duas imagens, ligadas com Maria, Mãe de Jesus e Mãe e modelo da Igreja, que nos ajudam a lançar uma luz de compreensão e de fé sobre o nosso tempo e sobretudo a abrir caminhos de esperança ativa para o futuro.

A primeira destas imagens é do livro do Apocalipse, o último livro da Bíblia, cujo título significa “Revelação”, desvelamento do sentido da vida e da história. Com a linguagem simbólica que lhe é própria, este trecho fala-nos de uma mulher que está para dar à luz, mas que se depara com dramáticas dificuldades e oposições, que põem em causa a sua existência e a do filho que está para nascer e que representa o futuro, a esperança e o sonho de vida, a começar pela superação da crise em que se encontra.

Esta Mãe evoca Maria, a mãe de Jesus, mas igualmente a Igreja nascente, que dá à luz uma nova geração de filhos/as e, de uma forma mais englobante, a humanidade inteira, no processo, tantas vezes dramático e penoso, de viver e de assegurar vida e futuro àqueles que gera.

A figura materna deste quadro não é um estereótipo do passado; é a realidade terna e tenaz de quantos e quantas sonham com afeto e realizam com energia, resiliência e esperança o projeto de Deus, apesar das dificuldades e hostilidades que encontram. Pensemos, como exemplo, naqueles e naquelas que estão a fazer esforços incríveis, em condições dramáticas, para socorrer as pessoas atingidas pela pandemia, nos hospitais, nos lares, nas casas onde se vive em solidão, nos campos de refugiados sem condições, na busca soluções para todos e não apenas para alguns. Estas pessoas são expressão concreta da Mãe Maria, da Mãe Igreja, da Mãe humanidade e do carinho de Deus que nunca a abandona. Essas são as atitudes que permitem assumir o peso da superação das crises, sem sucumbir nem ao desânimo nem à indiferença, mas contribuindo ativamente para superar as dificuldades com que nos debatemos.

Por outro lado, o quadro revelador do apocalipse põe também em evidência a realidade limitada, violenta e destrutiva que se encontra nos processos humanos e que coloca em perigo a vida e o futuro da humanidade. Este mundo, com toda a sua beleza e as suas possibilidades, é também frágil e por vezes instável e violento, sobretudo quando se rompe o equilíbrio que o mantém e nos sustenta. Para além desta pandemia e das outras que sempre ocorreram e podem ocorrer, este projeto de Humanidade-Mãe e Maria-Nova Humanidade é atingido por muitos monstros pandémicos que põem em perigo a vida e o futuro de todos.

Durante esta pandemia, a par da mais heroica abnegação e generosidade de tanta gente, têm-se manifestado muitas e poderosas atitudes manipuladoras e populistas, sem remorso de usar o sofrimento e o desconcerto social, para daí tirar dividendos políticos e económicos, criando mesmo conflitos e mobilizando o próprio poder para os seus objetivos conflituosos e estratégicos, que deixam sempre para trás os mais frágeis da humanidade. Esse é o monstro de que nos fala o quadro do apocalipse.

O quadro, traz-nos, porém, uma mensagem de profunda esperança: o projeto de Deus, apesar dos desastres naturais e das manobras destruidoras há de triunfar – o menino foi levado para junto de Deus – e a mulher (a Igreja, a humanidade), encontraram refúgio no deserto, onde Deus continuou a protegê-la. Isto é, Deus não promete que a superação desta e de todas as outras crises seja indolor. Mas promete que estará presente para que seja possível passar pelas dificuldades e superá-las. Maria, modelo da Igreja e inspiração para a humanidade, ensina-nos o caminho: mesmo na penúria do deserto, ela continua a ser a mãe de fé, que luta pela vida e pela proteção dos mais fracos, sabendo que Deus a acompanha e lhe permitirá levar a bom termo a sua viagem, pois o seu futuro (o seu filho) está sob a proteção de Deus.

Esta visão de dramatismo, mas de profunda esperança, é realçada pela leitura do Evangelho: Maria está ao pé da cruz de Jesus agonizante, juntamente com o apóstolo João, o modelo do discípulo fiel, semente da nova família de Jesus, a Igreja. Eles representam, antes de mais, a fidelidade a Jesus, Filho de Deus, e ao seu projeto. Mas é igualmente a expressão de completa proximidade com aquele que foi injustamente rejeitado, caluniado, condenado e executado. É, de novo, a imagem materna de cuidar dos mais frágeis e dos descartados, da coragem de partilhar a sorte dos condenados e excluídos, porque incómodos. Por aí passam tantas vezes os caminhos de Deus na humanidade. E Maria figura da Igreja e da humanidade solidária e materna, está lá, gerando, com a sua presença, uma humanidade que sabe acolher, cuidar e criar um futuro para todos.

Como sua última disposição para os que o seguem, “Jesus, ao ver ali ao pé a sua mãe e o discípulo que Ele amava, disse à mãe: Mulher, eis o teu filho! Depois, disse ao discípulo: Eis a tua mãe!” (Jo 19,26s). Com estas palavras, Jesus como que forma a sua nova família, a Igreja, constituída pela fé de Israel (a mãe) e pelos discípulos que o seguem. E em tudo isso, a figura materna de Maria permanece como matriz da Igreja para sempre. Está presente na fidelidade ao Filho, que uma mãe nunca esquece, mas igualmente ao Filho enquanto novo projeto e nova esperança de Deus, pois ela vai passar a ser mãe da nova família nascida aos pés da cruz.

Dando esta Mãe aos discípulos, Jesus pretende que a Igreja assuma a atitude de Maria: na fidelidade de Deus à sua aliança com Israel ao longo da história; na fidelidade ao homem sofredor, excluído e condenado; na misericórdia para a acolher a dor, mas na esperança para ajudar a encontrar caminhos de superação das crises e mesmo da morte; na fidelidade a este Homem Novo, que morre na cruz, assumindo todas as nossas crises e a nossa morte, para abrir um caminho para a plenitude da vida.

Hoje, na Cova da Iria ou em nossas casas, no meio desta pandemia, de certo modo, sentimo-nos como a mulher na travessia do deserto, preocupada e prudente, mas confiante e corajosa, porque Deus a protege e assegura o seu futuro. Por outro lado, também nos fala como ao discípulo João: “Aí está a tua Mãe”, para que assumamos a sua atitude de misericórdia, de proximidade e de esperança para com os que são atingidos por esta e por todas as pandemias. Não permitamos que os mais débeis fiquem esquecidos nas suas dificuldades. Cresçamos na solidariedade, na criatividade, na busca de caminhos novos para um mundo novo, com os muitos problemas e oportunidades que temos diante. Se assim fizermos, guiados pelo Espírito do Senhor e imitando as atitudes da Mãe-Maria, sairemos desta crise com mais vida e possibilidade de enfrentar os desafios que o futuro nos apresenta.

Os santos Jacinta e Francisco, na sua tenra e inocente idade, foram modelados por este coração materno de Maria e com ela aprenderam a seguir Jesus com infantil ternura e gigantesca coragem e confiança, enfrentando a doença pandémica que pôs termo à sua breve travessia desta vida. Que eles nos ajudem a deixarmo-nos, igualmente, guiar pela Mãe da Igreja, para podermos superar as dificuldades presentes e colaborar na construção de um mundo mais justo e solidário, aberto à grandeza e ao amor misericordioso do Pai do céu.

+ D. José Ornelas, Bispo de Setúbal

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13 de Outubro de 2020