comprehensive-camels

Covid-19/Fátima: «O sofrimento e a morte não podem ser confinados» – D. José Ornelas

20201113-missa-vitimas-pandemia-fatima (2)

“A crise tem-nos mostrado que o sofrimento e a morte não podem ser confinados e que só juntos, com o esforço e a responsabilidade de todos podemos construir um mundo aceitável para todos, em que nos cuidemos mutuamente. Assim como a dimensão do sofrimento e da morte são universais, assim também deve ser a defesa e o cuidado dela”, referiu D. José Ornelas, na homilia da Eucaristia pelas vítimas da Covid-19, a que presidiu na Basílica de Santíssima Trindade.

A celebração contou com a presença de 20 bispos católicos; do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa; do primeiro-ministro, António Costa; e de várias entidades públicas que se quiseram associar a esta homenagem de oração pelas vítimas, diretas ou indiretas, da pandemia.

 

A iniciativa, explicou o presidente da CEP no início da Missa, quis “recordar os irmãos que partiram”, num momento de oração.

D. José Ornelas apelou, na sua homilia, a uma mobilização incondicional da sociedade para defender a vida “com responsabilidade, competência e generosidade”.

“A pandemia que está a condicionar todo o planeta coloca-nos diante da evidência do dom precioso que é a vida humana e de todas as capacidades de que somos capazes para a defender, mas igualmente da fragilidade do nosso ser individual”, apontou.

O bispo de Setúbal rezou por “aqueles que partiram como vítimas diretas e indiretas da pandemia”, sublinhando que eles não são “números de uma estatística”.

Com aqueles e aquelas que nos deixaram, recordamos também quantos os acompanharam de mais perto na derradeira etapa da vida, a maior parte deles nos hospitais e nos lares, mas muitos no isolamento das suas casas: os profissionais da saúde, os investigadores, os cuidadores e colaboradores de tantas profissões e os que assumem a responsabilidade de organizar todo este esforço”.

Numa alusão indireta ao processo legislativo que visa a legalização da eutanásia, o presidente da CEP elogiou o “quanto a sociedade está disposta a investir” para defender e apoiar a vida, “embora, tantas vezes, não seja coerente com esses objetivos”, pedindo “proximidade e verdadeira misericórdia para com a fragilidade”.

“Se aprendermos desta epidemia a cuidar uns dos outros e juntos deste mundo, teremos feito justiça e boa memória dos que partiram e dos esforços de quantos os acompanharam na última etapa da vida nesta terra”, acrescentou.

A homilia destacou a figura bíblica de Job, como exemplo de fé diante do sofrimento, alguém que “percebe que a vida é um dom absoluto e não apenas uma conquista”.

“Esta é a dupla mensagem que Job nos deixa: investigar, procurar, interrogar-se, cuidar; e, ao mesmo tempo, confiar e abrir-se a um mundo onde só pode ser conduzido pela mão poderosa e carinhosa de Deus”, indicou D. José Ornelas.

 

O bispo de Setúbal comentou também a passagem do Evangelho relativa à ressurreição de Lázaro, para deixar uma mensagem de esperança às famílias enlutadas, nestes meses de pandemia.

Vós já não controlais o caminho dos vossos queridos que partiram; eles estão nas mãos do Pai do céu. Cuidastes deles até aqui, mas o amor do Pai é maior do que o vosso e cuida deles por caminhos novos e transformados. Deixai-os ir em paz! Conservai a memória deles com carinho, continuai o bem que eles fizeram; sede misericordiosos com as suas faltas e limites e limpai da vossa mente os litígios e feridas que vos ficaram, pois é assim que Deus faz com eles e convosco”.

Durante a celebração, os participantes rezaram para que os responsáveis políticos “promovam medidas justas, de caráter sanitário, social, económico, cultural e espiritual, que permitam levar esperança a toda a sociedade”.

No final da Missa, D. José Ornelas pediu que todos sejam “respeitadores e propagadores de vida”.

“Que possamos levar sempre o sinal da esperança, de que Deus é maior do que todas as nossas crises. Com Ele, nós venceremos também esta”, concluiu.

Agência Ecclesia

Fotos: Agência Ecclesia/Arlindo Homem

 

Eucaristia pelas vítimas da Covid-19

Saudação inicial

Saúdo muito fraternamente o Senhor Núncio Apostólico, o Senhor Cardeal Patriarca, o Senhor Cardeal António Marto, Bispo desta Diocese de Leiria-Fátima, que não pode estar nesta celebração por motivos de saúde, os Senhores Bispos, o Senhor Reitor do Santuário de Fátima e os sacerdotes que concelebram nesta eucaristia, com os diáconos e outros ministérios que nela servem e toda a assembleia que participa nesta celebração.

Saúdo, de modo muito especial o Senhor Presidente da República, o Senhor Presidente da Assembleia da República e o Senhor Primeiro Ministro e representantes de outras entidades públicas que quiseram associar-se a esta homenagem e oração pelos irmãos e irmãs que faleceram atingidos pela pandemia que está a atingir o país e o mundo e a todos os que pereceram como vítimas indiretas dela.

Fazemo-lo, não apenas como homenagem e memória daqueles que partiram do nosso convívio, mas, acima de tudo, como atitude de confiança no poder e no amor do Pai do céu, que nunca deixa cair da sua mão carinhosa os filhos e filhas que acompanhou durante a vida.

Gostaríamos de estar aqui todos os bispos da Igreja em Portugal, mas, devido às condições que todos conhecemos, muitos não puderam estar presentes e certamente nos acompanham nesta celebração, com todos os irmãos e irmãs que estão em comunhão connosco através dos meios de comunicação.

Assim unidos, reconheçamos diante de Deus as nossas fragilidades, pedindo que nos acolha segundo o seu coração misericordioso, nos liberte dos nossos erros e egoísmos e nos transforme com o seu Espírito, para podermos participar no banquete da vida que Ele nos oferece.

 

Homilia

Irmãos e irmãs,

A pandemia que está a condicionar todo o planeta coloca-nos diante da evidência do dom precioso da vida humana e de todas as capacidades de que somos capazes, mas igualmente da fragilidade do nosso ser individual, das nossas realizações sociais, políticas, económicas e científicas, bem como do próprio mundo que habitamos.

Celebrar diante de Deus aqueles que partiram como vítimas diretas e indiretas da pandemia significa reconhecê-los não apenas como números de uma estatística, mas como criaturas amadas de Deus, abrindo-se a um itinerário de vida que vai para além daquilo que conhecemos e podemos nesta terra.

Com aqueles e aquelas que nos deixaram, recordamos também quantos os acompanharam de mais perto na derradeira etapa da vida, a maior parte deles nos hospitais e nos lares: os profissionais da saúde, os investigadores, os cuidadores e colaboradores de tantas profissões e os que assumem a responsabilidade de organizar todo este esforço. A sua dedicação, esforço, inteligência e abnegação são a expressão do apreço da nossa sociedade pela vida e de quanto está disposta a investir para defendê-la e apoiá-la, embora, tantas vezes, não seja coerente com esses objetivos.

Além disso, a crise tem-nos mostrado que o sofrimento e a morte não podem ser confinados e que só juntos podemos construir um mundo aceitável para todos, em que nos cuidemos mutuamente. Assim como a dimensão do sofrimento e da morte são universais, assim também deve ser a defesa e o cuidado dela.

Quem dera que sejamos capazes, como país e como humanidade, de manter esta hierarquia de valores, de proximidade e verdadeira misericórdia para com a fragilidade, tantas vezes dramática, da nossa condição humana e do planeta que habitamos. Se aprendermos desta epidemia a cuidar uns dos outros e juntos deste mundo, teremos feito justiça e boa memória dos que partiram e dos esforços de quantos os acompanharam na última etapa da vida nesta terra.

No entanto, mesmo envidando todos os esforços, chegamos sempre à conclusão de que eles são limitados e insuficientes. A vida das pessoas e do planeta é sempre delicada e finita. Aceitar e integrar esta finitude num projeto de vida com sentido é a mensagem que nos trazem as leituras que acabámos de proclamar nesta eucaristia.

A primeira leitura, tirada do livro de Job, certamente uma das obras-primas da tradição da humanidade, traz-nos o grito, não de um filosófico distante, mas da dura e dramática realidade de um homem justo e de sucesso, subitamente atingido por uma série de desgraças, vítima de uma doença destrutiva que o isola e diante da perspetiva inevitável da morte. É bem a imagem de tantos homens e mulheres nesta pandemia.

Embora reconheça que não é perfeito, Job não aceita a ideia de que as suas desgraças são um castigo de Deus, com sugerem os que o observam e julgam, apontando o dedo, sem estender a mão. Não teoriza a dor nem a injustiça, mas sente-as dramaticamente na carne. O seu grito ecoa por toda a humanidade e por todos os tempos, como aflição, como protesto, e finalmente como paradoxal confiança: “Eu sei que o meu redentor vive e, por último, sobre o pó se elevará. Mesmo que desfeita seja a minha pele, na minha própria carne verei a Deus. Eu mesmo o verei, os meus olhos o hão de contemplar e não como um estranho.”

O seu grito é, ao mesmo tempo de protesto pela situação aflitiva em que se encontra, de perplexidade, de incompreensão se si próprio e de Deus, mas igualmente de proclamação de uma confiança que nem ele sabe como exprimir, mas apenas gritar na sua dor. É como o grito de uma criança que nem sabe a razão por que chora, mas chora porque sabe que a mãe ouve. Esse é o grito de toda a humanidade, que não se conforma nem resigna, mas que se esforça por cuidar e amparar a vida em todos os seus momentos, e por encontrar sentido na luta por superar todas as crises que vai experimentando. Até ao fim da existência, Job não é um resignado, mas um lutador, não é um acomodado a soluções e explicações fáceis, mas um peregrino da verdade, da justiça, da vida.

Por outro lado, ele percebe que a vida é um dom absoluto e não apenas uma conquista: ninguém paga o bilhete de entrada nem a viagem de saída. Tudo é um milagre do cuidar e do amparar. Nascemos e sobrevivemos pela ação de outros que cuidaram de nós e acompanharam o desabrochar da nossa vida. Ao sentir a proximidade de concluir o percurso existencial, Job percebe que o que se segue já não pode ser o resultado do engenho e nem sequer do carinho humano. Por isso, grita, argumenta e pede a Deus que faça jus ao seu nome de “justo e misericordioso” e se revele como Criador e Cuidador da sua fragilidade.

Esta é a dupla mensagem que Job nos deixa: investigar, procurar, cuidar; e, ao mesmo tempo, confiar e abrir-se a um mundo onde só pode ser conduzido pela mão poderosa e carinhosa de Deus.

É isso também que nos dizem as irmãs de Lázaro, de que nos fala a leitura do Evangelho. Elas têm consciência que a vida é o dom primeiro e fundamental de Deus. Sabem também que Deus se manifestou amigo e próximo em Jesus, o amigo da família. Quando o irmão adoeceu, tinham-lhe mandado dizer: “Lázaro, aquele de quem tu és amigo está doente”. Por isso, quando Jesus chega, três dias depois da morte de Lázaro, exclamam, em tom de luto, que não está isento de uma confiança ferida e de crítica velada: “Se tivesses estado aqui, o nosso irmão não teria morrido”. Quantas pessoas não têm tido esta experiência nestes dias, à beira de um túmulo?!

Diante da dor das irmãs e da evidência do amigo morto, diz o evangelista que Jesus “comoveu-se profundamente”. É a expressão do sentir de Jesus perante o sofrimento e a morte. Ele sabe, por experiência própria, o que é o sofrimento e a morte; ama esta família amiga (nós todos), cujo irmão morreu, e partilha o nosso luto, a nossa dor e as nossas lágrimas, como fez ao longo de toda a sua vida, com os doentes, os excluídos, os pecadores.

Mas não veio apenas para chorar e partilhar a nossa morte; veio para abrir as portas dessa prisão e grita “profundamente perturbado” diante do túmulo que, em breve, também experimentará: “Retirem a pedra” desse túmulo que causa horror, separação e rejeição como dizem as irmãs: “Já cheira mal, é já o quarto dia”. À voz de Jesus o morto sai vivo, mas o que a família vê – o que nós vemos e nos causa perturbação – é ainda um morto, envolto nas ligaduras, que são esse modo humano de encerrar os defuntos na prisão subterrânea da morte.

Mas Jesus não vê assim os seus amigos que passaram desta vida. Por isso, dá outra indicação fundamental para esta família amiga: “Desatem essas ligaduras! Deixem-no ir!”. Não teimem em ver aqueles que já partiram simplesmente com o vosso sentir, o vosso saber e o vosso poder. Deus é maior, mais poderoso e carinhoso do que vós. Vós já não controlais o caminho dos vossos queridos que partiram; eles estão nas mãos do Pai do céu. Cuidastes deles até aqui, mas o amor do Pai é maior do que o vosso e cuida deles por caminhos novos e transformados. Deixai-os ir em paz! Conservai a memória deles com carinho, continuai o bem que eles fizeram; sede misericordiosos com as suas faltas e limites e limpai da vossa mente os litígios e feridas, pois é assim que Deus faz com eles e convosco.

Hoje, no meio da pandemia, celebrando a memória daqueles que partiram, Jesus vem visitar as nossas famílias feridas pela saudade e, em muitos casos, pelo peso de não terem podido dar-lhes a presença e a assistência que desejavam; tolhidas pelo luto que não puderam fazer e que ainda dói. Como em casa da família de Lázaro, Ele que passou pela morte e está vivo para sempre, vem trazer-nos o conforto da sua presença amiga e abrir os nossos olhos para a grandeza do poder e do amor do Senhor, Criador e Pai do céu. Penso que Ele continua a sugerir ao nosso coração:

 

“Vinde a mim todos vós que andais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei”
(Mt 11,28).

Vinde, vós que experimentais a dor e a doença,

nos hospitais, nos lares ou nas famílias,

Vós que assistis os doentes até à exaustão e ao desânimo

e que sois as minhas mãos para levantar, cuidar e acarinhar.

Vós que não suportais mais confinamentos e limitações,

e sentis desejo de irrefreável de liberdade, companhia e festa.

Aprendei de mim a cuidar uns dos outros

com responsabilidade, competência e generosidade.

Sede portadores de vida e de bem

e procurai não transmitir o mal a ninguém.

mas ajudai quem precisa e partilhai com aqueles que não têm.

Conservai a memória dos vossos queridos com quem partilhastes a vida.

Eu partilho e enxugo as lágrimas da vossa saudade,

pois o Pai do céu é que cuida deles

com mão forte, fiel e misericordiosa.

Não vivais angustiados com a vossa vida e o vosso futuro

Eu estarei sempre convosco,

mesmo quando vos sentirdes sós e abandonados.

 

Tende confiança e cuidai uns dos outros

e vencereis esta crise

como construtores de um mundo mais justo, fraterno e em paz.

E sereis peregrinos de uma Nova Cidade e um Mundo Novo,

onde vos preparo o banquete da vida que não tem fim.

 

Job 19,1.23-27a (Nº 242 da “Celebração das exéquias”)

Jo 11,28-44 (texto em apêndice).

Rm 8,31b.35.37-39 (Nº 259 da “Celebração das exéquias”)

 

+ D. José Ornelas, Bispo de Setúbal

 

Partilhe nas redes sociais!
16 de Novembro de 2020