O Bispo de Setúbal presidiu à Eucaristia de Dia de Natal na Paróquia de Santo André, no Barreiro, transmitida em direto na RTP.
Homilia
As leituras que ouvimos proclamar em cada Natal, têm, este ano, uma ressonância especial, à luz da situação que vivemos. Na realidade, se há uma mensagem fundamental, em cada Natal, é precisamente a de fazer encarnar o Natal histórico de Jesus, de há mais de 2000 anos, na realidade concreta de cada Natal, ao longo da história.
O primeiro Natal, o nascimento de Jesus em Belém, foi a vinda do Filho de Deus ao mundo concreto do tempo. O Evangelho de Lucas, preocupa-se de situá-lo concretamente na história, como lemos no Evangelho desta noite: “Por aqueles dias, saiu um édito da parte de César Augusto para ser recenseada toda a terra. Este recenseamento foi o primeiro que se fez, sendo Quirino governador da Síria” (Lc 2,1-2). É essa a mensagem primeira do Natal: em Jesus, Deus torna-se o “Emanuel, Deus connosco”, como tinha sido anunciado pelo profeta Isaías, assumindo as vicissitudes do seu tempo, com o que têm de bom e de esperança, mas igualmente os seus dramas, sofrimentos e desilusões. Essa vinda, passada desapercebida aos contemporâneos, com exceção de um pequeno número de pessoas humildes, infundiu nova vida e nova esperança no mundo inteiro.
Nesse Natal original, Maria e José estavam a preparar o nascimento do seu filho, Jesus, com todo o cuidado e esperança, quando foram surpreendidos por um decreto imperial que impunha importantes contrariedades ao que deveria ser o normal desenvolvimento do primeiro parto da jovem mãe. Tinham de viajar para Belém, longe de casa, por mandato imperial, para um recenseamento nada simpático, em condições bem desapropriadas para a condição da mãe e para o Menino prestes a vir ao mundo.
Mas um parto e um nascimento, não se adiam para quando houver melhores condições. Há é que procurar a melhor forma de realizar esta festa da vida, dentro de cada situação concreta. E, então, aquilo que parecia uma sombria contrariedade e mau presságio, revela-se fonte de luz e motivo de nova esperança para o casal, o seu bebé e para outros inesperados hóspedes, de perto e de longe.
Foi a partir daí que, como diziam as leituras desta noite: “Um povo que vivia nas trevas, viu uma grande luz” (Is 9,1). O Natal, a alegria, a festa, o canto dos anjos, não estavam já montados, quando Jesus chegou; nasceram com Ele, no cuidado de Maria e José, no acolhimento dos pastores, mas igualmente no desconforto da situação, na saudade e ausência da família mais alargada, na indiferença da maioria, na oposição de muitos e até na perseguição sobretudo dos poderosos, como o rei Herodes.
O Filho de Deus, o Senhor do universo, não entra solenemente no mundo rodeado de fanfarras, adereços e atitudes dos poderosos da terra, mas inicia a sua presença como criança que precisa de ser cuidada, para subsistir. O Senhor, o Cuidador da humanidade começa por propor-se como Menino frágil, necessitado do carinho e do cuidado daqueles de quem vem em auxílio. Foi assim que Maria e José, os pastores, os magos (a humanidade) acolheram Jesus. Cuidando da fragilidade, cuida-se do futuro, cuida-se do mundo, cuida-se de Deus, tornando possível que Ele seja Emanuel, Deus-connosco.
Para celebrar hoje o Natal, não esquecemos a pandemia, os sofrimentos, os mortos, as saudades provocadas pelo isolamento, as consequências para os que já estavam fragilizados na saúde, no desemprego, nas fracas economias. Como para Maria e José, o desconforto, a ansiedade e o receio se abriram à alegria imensa do surgir da vida e da esperança pelo nascimento de Jesus. Para os rudes pastores de Belém, o frio e a escuridão da noite iluminaram-se com a luz fulgurante e os cânticos do céu e tornaram-se concretos na terra, através de uma frágil e impotente criança, fonte de ternura e de esperança.
Assim, para nós hoje, o Evangelho que escutámos e estamos a celebrar, vem trazer um anúncio e um convite a descobrir os sinais de Deus, a partir das sombras desta difícil situação de pandemia que estamos a viver. O mundo não está a acabar: está é a começar a possibilidade de mudar e de transformar a partir de cada um e cada uma de nós, de cada família, paróquia, da Igreja e de cada país.
Essa esperança nasce pequenina, sem poder e até sem capacidade nem possibilidade de se bastar a si mesma. Se não tiver acolhimento e proteção, se não for o cuidado dos pais e a ajuda dos que estão próximos e de gente de boa vontade, essa luz não vai brilhar para o mundo, será uma luz abafada que se extingue. O Deus omnipotente, que vem cuidar da humanidade frágil, conflituosa, e tantas vezes injusta e cruel, entra no mundo a pedir que cuidem dele, que cuidem do seu Projeto de mundo novo, que olhem para a ternura impotente de um menino recém-nascido, como caminho e metodologia para construir o futuro e a esperança.
Aos poderosos e prepotentes, esse Menino que vem de fora, que pede acolhimento, cuidado e carinho mete medo, porque põe em causa o seu modo autocêntrico de viver, a sua ambição de espoliar e de se apoderar de tudo e tudo dominar, mesmo à custa de pisar os inocentes, de espoliar os fracos, de excluir os que são diferentes, de fechar os olhos perante a humanidade e o mundo. O Menino de Belém, as crianças desta terra em crise, os homens e mulheres de todas as idades e culturas, afetados por esta e tantas outras epidemias da humanidade, são a denúncia desse modo de viver e o choro de criança que pede que se lhe dê atenção, carinho e cuidado.
Mas, assim como o choro de um bebé atinge e desperta os melhores sentimentos, capacidades e energias dos pais e dos que estão à sua volta, também os sentimentos de Natal, no meio desta pandemia, mobilizaram pastores e magos de perto e de longe para dar boas-vindas, conforto e ajuda às muitas pessoas e famílias atingidas pela pandemia. E é assim nos hospitais, nos lares, nas casas de quem vive sozinho, nas habitações sem condições dos mais pobres, dos sem teto e dos imigrantes que estão chegando, para os quais “não havia lugar na estalagem”. É assim na aflição de quem perdeu o emprego e olha com muita preocupação o futuro, entre os responsáveis da gestão da saúde, dos serviços e da vida pública. É igualmente assim nas nossas casas, onde nos protegemos juntos, na contenção que assumimos nos contatos, para cuidar de nós e dos que nos rodeiam, na mão que estendemos a quem mais precisa, para que haja Natal para todos e ninguém fique dele excluído.
É preciso que este cuidar, como modo de ser, de estar e de se relacionar, brilhe e se propague como luz, no meio desta e de todas as pandemias do mundo, neste Natal. Que seja essa a expressão do acolhimento do Menino de Belém, gerando autenticidade, esperança e atitude, neste mundo, e se abra à grandeza, ao amor e ao projeto de Deus para a humanidade. Assim, podemos juntar-nos verdadeiramente ao canto dos anjos:
GLÓRIA A DEUS NAS ALTURAS E PAZ NA TERRA AOS HOMENS QUE ELE AMA!
+ D. José Ornelas, Bispo de Setúbal