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Reflexão: O significado de ‘rezar pelos defuntos’

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Na ocasião da celebração do Dia dos Fiéis Defuntos, o Padre António Sílvio Couto partilha a sua reflexão sobre o significado desde dia nas suas dimensões humana, litúrgica e escatológica.

«Desde os primeiros tempos, a Igreja honrou a memória dos defuntos, oferecendo sufrágios em seu favor, particularmente o Sacrifício eucarístico para que, purificados, possam chegar à visão beatífica de Deus. A Igreja recomenda também a esmola, as indulgências e as obras de penitência a favor dos defuntos:

«Socorramo-los e façamos comemoração deles. Se os filhos de Job foram purificados pelo sacrifício do seu pai por que duvidar de que as nossas oferendas pelos defuntos lhes levam alguma consolação? […] Não hesitemos em socorrer os que partiram e em oferecer por eles as nossas orações» (Catecismo da Igreja Católica, 1032).

Estamos a viver comunitariamente este tempo de oração pelos defuntos, nisso a que a Igreja chama de dia ‘dos fiéis defuntos’, rezando conjuntamente por todos quantos partiram deste mundo e ‘dormem agora o sono da paz’.

Apesar de nem todos darmos o mesmo significado a este dia e estando em atitude de oração pelos defuntos, vamos abordar a questão em três níveis: humano-afetivo, eclesiológico-litúrgico e escatológico.

Na dimensão humano-afetiva

É natural que eu tenha recordação, saudade – neste termo tão português e quase cristão – e tristeza para com alguém que faleceu e a quem eu estava unido por razões de consanguinidade, parentesco, afinidade psicológica (amizade ou laços sociais) e mesmo em razão da fé.

Cada um poderá ter a sua forma pessoal, de grupo e/ou social de exprimir essa ligação/recordação a quem partiu. Se há quem o faça de forma discreta, outros tornam-se mais exuberantes nessa expressão afetivo-emocional. Por vezes certos rituais podem exprimir o modo de entendermos a vida e aquilo que se dará depois da morte. Sem desejarmos distrair do essencial poderíamos recordar um diálogo entre pessoas de culturas diferentes ao observarem os gestos de outros…para com os defuntos. A um que via outro colocar arroz sobre a sepultura, disse: esperas que o teu morto venha comer do teu arroz? Ao que o visado ripostou: e tu pensas que ele vem cheirar as tuas flores?

Mais do que estes ritos ‘culturais’ quase etnográficos, será perigoso o caminho por onde vamos: o esquecimento e quase total abandono da lembrança dos mortos por aqueles que receberam ‘educação’ em vida… Esta privatização da morte vai trazer-nos consequências graves, profundas e nefastas…

Na perspetiva eclesiológica-litúrgica

Inseridos na vivência de Igreja – referimos sobretudo na dimensão católica – recordamos, rezamos e intercedemos pelos que partiram ‘antes de nós marcados com o sinal da fé’.

Respigamos, agora, momentos de oração pelos defuntos nas quatro orações eucarísticas mais usadas:

* Oração eucarística I ou cânone romano
Lembrai-vos, ó Pai, dos vossos filhos e filhas N. N. que partiram desta vida, marcados com o sinal da fé. A eles, e a todos os que adormeceram no Cristo, concedei a felicidade, a luz e a paz. Por Cristo, Senhor nosso.

* Na oração eucarística II
– ‘Missa pelos defuntos’: Lembrai-vos do vosso servo/a N., que (hoje) a quem chamastes para Vós. Configurado com Cristo na morte, com Cristo tome parte na ressurreição
Lembrai-vos também dos (outros) nossos irmãos que adormeceram na esperança da ressurreição e de todos aqueles que na vossa misericórdia partiram deste mundo: admiti-os na luz da vossa presença.

* Na oração eucarística III
– ‘Na missa pelos defuntos’: Lembrai-vos do vosso servo (da vossa serva) N., que (hoje) chamastes para Vós:  configurado/a com Cristo na morte, com Cristo tome parte na ressurreição, quando Ele vier ressuscitar os mortos e transformar o nosso corpo mortal à imagem do seu corpo glorioso.
Lembrai-Vos também dos nossos irmãos defuntos  e de todos os que morreram na vossa amizade. Acolhei-os com bondade no vosso reino onde também nós esperamos ser recebidos, para vivermos com eles eternamente na vossa glória, quando enxugardes  todas as lágrimas dos nossos olhos; e, vendo-Vos tal como sois, Senhor nosso Deus, seremos para sempre semelhantes a Vós e cantaremos  sem fim os vossos louvores, por Jesus Cristo nosso Senhor.

* Na oração eucarística IV
 Lembrai-Vos também dos nossos irmãos que adormeceram na paz de Cristo e de todos os defuntos cuja fé só vós conhecestes.

Estes exemplos em ritmo orante, fazem com que nos sintamos unidos aos que, pela fé e na fé, celebraram connosco e nós, agora, na transmutabilidade de condição corporal queremos associar-nos a eles, quando ainda estamos em condição terrena…

Referência escatológica

Nada daquilo que podemos propor e de viver, na linha de uma autêntica fé católica, se pode dissociar deste aspeto de relacionamento com os defuntos em que apontamos para a vivência escatológica, isto é, daquilo que haveremos de viver na condição de glorificados: nós vivemos ainda em circunstância terrena, eles já viram Deus face-a-face.

De facto, a nossa liturgia celebrada aponta para algo mais transcendente: ensaiamos em condição terrena aquilo para o qual aponta a nossa fé. Rezar pelos defuntos é, então, algo mais do que metafísico, é, essencialmente, transformador da nossa vivência em assembleia orante, celebrante ou peregrina: é, em mistério, força de vida que suporta a nossa condição de Igreja.

Como dizemos na aclamação após a consagração: ‘anunciámos, Senhor, a vossa morte, proclamámos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus’!

Queira Deus que sejamos dignos de quantos nos precederam na fé e no testemunho… esses que, agora, são defuntos, não como mortos, mas como orientadores da nossa caminhada, tanto na força que nos dão como na correção que merecemos…

Padre António Sílvio Couto, Pároco da Moita

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02 de Novembro de 2021