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Reflexão: Tumulação ou sepultamento… nunca enterro

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Reflexão do Padre António Sílvio Couto, Pároco da Moita

Há expressões recorrentes, nalguma linguagem religiosa, mesmo em contexto católico de semana santa, que não estão adequadas à realidade teológica e espiritual. Uma dessas expressões é: ‘enterro do Senhor’, que poderá caraterizar uma certa devoção, na sexta-feira santa, ao fazer uma procissão como se fosse o enterrar de Jesus, numa alegoria à sua sepultura.

Pessoalmente deixa-me um amargo psicológico ver pessoas que vão ao ‘enterro do senhor’, mas ignoraram todas as outras celebrações anteriores, como a ‘adoração da cruz’ ou mesmo iniciativas de índole pessoal ou comunitária, como a via-sacra ou momentos litúrgicos relevantes da paixão-morte do Senhor.

Pior ainda quando vejo participantes em conversa pegada ao longo da dita ‘procissão do enterro’, isto para não repudiar os tocantes da banda, que quando não executam as ‘peças’ musicais se entretém perturbando com barulho menos adequado…

Em passagem alguma dos textos bíblicos se diz que Jesus foi enterrado – colocado na terra – mas antes colocado num túmulo – daí tumulação – ou sepultado – decorrendo sepultamento – de Jesus após a sua trágica morte de crucificado. Pior ainda: os enterros a que vamos são irreversíveis, isto é, o morto não sairá de lá, muito menos com vida. Ora Jesus foi colocado no túmulo (cf. Lc 23,53) na esperança da ressurreição, confirmada pelo túmulo vazio e as manifestações d’O ressuscitado. Continuar a usar uma linguagem incorreta pode induzir em erro e, sobretudo, num faz-de-conta que não se passou com Jesus…

Embora possa ser (infelizmente) atrativo de algum ‘folclore’ religioso, seria de razoável proporção – além de explicar que a expressão está fora do espírito católico de fé celebrada e vivida – ir banindo das ‘cerimónias’ populares algo que contradiz a nossa fé mais básica e essencial. Precisamos de encontrar – usando os meios atuais de comunicação – novas formas de ocupar esse espaço de expetativa entre a adoração da cruz e a celebração da vigília pascal, com as suas quatro liturgias – da luz, da palavra, batismal e eucarística. Por que não ler e meditar, refletir e interiorizar os textos do sepultamento em condições que nos permitam rezar, mais do que desfilar pelas ruas em caminhada de entretenimento… como vi nalguns momentos da (dita) procissão do ‘enterro do senhor’? Por que não darmos mais espaço à interioridade do que às coisas tradicionais mais ou menos anódinas, repetitivas e insossas de fé e de compromisso?

Para quem ainda promove as ‘cerimónias da semana santa’ – seja lá onde for e com que objetivos – talvez seja chegada a hora de questionar quem a elas vai ou mesmo quem nelas participa. Onde estão os jovens? Não foram para as ‘viagens de finalistas’, deixando a descoberto o lugar nas assembleias de domingo a que ainda vão, às vezes? Por que sairão tantos portugueses para as tais ‘férias de páscoa’, trocando os locais celebrativos por espaços de veraneio? Não andaremos a engordar a religião, depreciando os sinais centrais do cristianismo? Agora que a pandemia parece dar indícios de menor incidência, como poderemos criar condições para fazer melhor e mais conscientemente o que devíamos já ter feito?

Sacudidos pela indiferença fortemente promovida, alimentada ou quase incentivada pela pandemia precisamos de encontrar novas formas de celebrar os mistérios pascais, limpando teias de comodidade ou mesmo rituais sociais gastronómicos, pois que significará ‘comer o cabrito (ou o cordeiro)’, se ele não representa mais do que uma iguaria desta época? Qual o alcance da doçaria – profusa e simbólica – se ela não significar a terra prometida dada a um povo que passou das trevas para a luz? Haja verdade e não aproveitamento consumista!

Afinal, a Páscoa não se reduz à visão castrante de ‘ovos-e-coelhos’ de chocolate (ou em papel pintado), mas antes vida nova em Deus, celebrada na comunhão da Igreja! A Páscoa é, acima de tudo, a festa da vida, não da rastejante e sem saída, mas da verdadeira porque fundada sobre a vitória de Jesus sobre a morte e o pecado…para sempre!  

Padre António Sílvio Couto

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14 de Abril de 2022