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Reflexão: Mulheres, primeiras testemunhas da Ressurreição

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Reflexão do Padre António Sílvio Couto, Pároco da Moita

Depois do sepultamento de Jesus, pelos seus amigos Nicodemos e José de Arimateia, vemos a referência a várias mulheres no contexto dos cuidados ao corpo Senhor. A surpresa acontece!

«1 No primeiro dia da semana, ao romper da alva, as mulheres foram ao sepulcro, levando os perfumes que haviam preparado. 2 Encontraram removida a pedra da porta do sepulcro 3 e, entrando, não acharam o corpo do Senhor Jesus. 4 Estando elas perplexas com o caso, apareceram-lhes dois homens em trajes resplandecentes. 5 Como estivessem amedrontadas e voltassem o rosto para o chão, eles disseram-lhes: «Porque buscais o Vivente entre os mortos? 6 Não está aqui; ressuscitou! Lembrai-vos de como vos falou, quando ainda estava na Galileia, 7 dizendo que o Filho do Homem havia de ser entregue às mãos dos pecadores, ser crucificado e ressuscitar ao terceiro dia».
8 Recordaram-se, então, das suas palavras. 9 Voltando do sepulcro, foram contar tudo isto aos Onze e a todos os restantes. 10 Eram elas Maria de Magdala, Joana e Maria, mãe de Tiago. Também as outras mulheres que estavam com elas diziam isto aos Apóstolos; 11 mas as suas palavras pareceram-lhes um desvario, e eles não acreditaram nelas. 12 Pedro, no entanto, pôs-se a caminho e correu ao sepulcro. Debruçando-se, apenas viu as ligaduras e voltou para casa, admirado com o sucedido» (Lc 24, 1-12 // Mt 28,1-10; Mc 16,1-8; Jo 20,1-18).

A presença e o destaque dado às mulheres nas manifestações d’ O Ressuscitado é uma linha permanente nas narrativas dos quatro evangelhos canónicos. É digno de realce que dos quatro evangelhos canónicos, não há dois nos quais os nomes das mulheres sejam idênticos. Os três sinóticos concordam com Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago e de João. O evangelho de São João só refere Maria Madalena. Marcos menciona Salomé, enquanto São Lucas cita a presença de Joana. Dando ainda uma perspetiva de conjunto sobre os relatos das mulheres sobre a ida ao sepulcro e o seu testemunho, podemos perceber que as mulheres entraram no sepulcro por sua iniciativa e que descobriram que estava vazio: em São Mateus e em São Marcos, as mulheres são convidadas a ver o sepulcro vazio; em São Lucas, depois de descobrirem que o sepulcro está vazio, aparecem-lhes dois anjos, que lhes anunciam que Jesus tinha ressuscitado. No evangelho de São João a testemunha única é Maria Madalena, em diversas etapas.  

Eis como o Catecismo da Igreja Católica se refere às mulheres, que designa de ‘primeiras mensageiras da ressurreição’:

«Maria Madalena e as santas mulheres, que vinham para acabar de embalsamar o corpo de Jesus, sepultado à pressa por causa do início do «Sábado», no fim da tarde de Sexta-feira Santa, foram as primeiras pessoas a encontra-se com o Ressuscitado. Assim, as mulheres foram as primeiras mensageiras da ressurreição de Cristo para os próprios Apóstolos. Em seguida, foi a eles que Jesus apareceu: primeiro a Pedro, depois aos Doze. Pedro, incumbido de consolidar a fé dos seus irmãos, vê, portanto, o Ressuscitado antes deles e é com base no seu testemunho que a comunidade exclama: «Realmente, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão» (Lc 24, 34.36)» (Catecismo da Igreja Católica, 641).

Deixo, em jeito quase de provocação, algumas questões – muitas delas tenho desde longa data e ainda não consegui resolver nem ver, na Igreja, vislumbre de solução – de ontem como de hoje.

* Inserindo-se o cristianismo numa cultura onde o homem era a figura principal do culto e da vida social, por que se dá tanto destaque às mulheres como testemunhas da ressurreição de Jesus? Como se poderá compreender que, no judaísmo, quem era digno de crédito para jurar era o homem, surjam as mulheres como aquela que afirmam e testemunham a ressurreição de Jesus? Qual a ligação entre a Cruz e a Ressurreição: as mulheres são os fatores de presença, enquanto os homens (discípulos) fugiram por medo?

Como sugestão de resposta a estas questões, cito o Papa Bento XVI, Jesus de Nazaré – da entrada em Jerusalém até à ressurreição, p. 214: «Diversamente, as narrações não se sentem presas a tal estrutura jurídica [só os homens eram aceites como testemunhas, juridicamente], mas comunicam a experiência da ressurreição em toda a sua amplitude. Tal como junto da cruz – se excetuarmos João – já só tinham estado mulheres, assim se destina a elas o primeiro encontro com o Ressuscitado. Na estrutura jurídica, a Igreja está fundada sobre Pedro e os Onze, mas na forma concreta de vida eclesial, são sempre as mulheres que abrem a porta ao Senhor, O acompanham até à cruz e assim podem encontrá-lo também como Ressuscitado». Dito por quem foi e referido o que está subjacente, poderemos encontrar resposta para alguns desfasamentos entre o pensamento e vida, ainda hoje, na Igreja católica!  

* À luz das manifestações nos evangelhos às mulheres do Ressuscitado poderemos questionar o papel, o lugar e o ministério das mulheres, hoje? Dado que no mundo, cada vez mais as mulheres assumem funções de relevo e de decisão – ao tempo a União Europeia é dirigida por três mulheres, de países diferentes – como deverá ser isso mesmo na Igreja católica? Até que ponto haverá visão, sensibilidade e dinâmica própria das mulheres e não do mero feminino? Será que podemos refletir sobre o ministério da mulher muito para além da mulher no exercício do ministério, particularmente sacerdotal?

Talvez estas questões possam ser um tanto de fronteira, isto é, numa transferência daquilo que se vive na condição do mundo para ler, interpretar ou discernir assuntos da Igreja, sobretudo na sua expressão católica. Com efeito, não se pode confundir a função da mulher na Igreja com funções femininas nas igrejas…

* Sabendo que o assunto é árduo na reflexão e tortuoso nas consequências, deixo alguns respigos da exortação apostólica ‘Evangelii gaudium’ do Papa Francisco sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual…mais como flashes do que como soluções (n. os 103-104):

«A Igreja reconhece a indispensável contribuição da mulher na sociedade, com uma sensibilidade, uma intuição e certas capacidades peculiares, que habitualmente são mais próprias das mulheres que dos homens. Por exemplo, a especial solicitude feminina pelos outros, que se exprime de modo particular, mas não exclusivamente, na maternidade. Vejo, com prazer, como muitas mulheres partilham responsabilidades pastorais juntamente com os sacerdotes, contribuem para o acompanhamento de pessoas, famílias ou grupos e prestam novas contribuições para a reflexão teológica. Mas ainda é preciso ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja. Porque «o génio feminino é necessário em todas as expressões da vida social; por isso deve ser garantida a presença das mulheres também no âmbito do trabalho» e nos vários lugares onde se tomam as decisões importantes, tanto na Igreja como nas estruturas sociais.
As reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir da firme convicção de que homens e mulheres têm a mesma dignidade, colocam à Igreja questões profundas que a desafiam e não se podem iludir superficialmente.

O sacerdócio reservado aos homens, como sinal de Cristo Esposo que Se entrega na Eucaristia, é uma questão que não se põe em discussão, mas pode tornar-se particularmente controversa se se identifica demasiado a potestade sacramental com o poder. Não se esqueça que, quando falamos da potestade sacerdotal, «estamos na esfera da função e não na da dignidade e da santidade». O sacerdócio ministerial é um dos meios que Jesus utiliza ao serviço do seu povo, mas a grande dignidade vem do Batismo, que é acessível a todos. A configuração do sacerdote com Cristo Cabeça – isto é, como fonte principal da graça – não comporta uma exaltação que o coloque por cima dos demais. Na Igreja, as funções «não dão justificação à superioridade de uns sobre os outros». Com efeito, uma mulher, Maria, é mais importante do que os Bispos. Mesmo quando a função do sacerdócio ministerial é considerada «hierárquica», há que ter bem presente que «se ordena integralmente à santidade dos membros do corpo místico de Cristo». A sua pedra de fecho e o seu fulcro não são o poder entendido como domínio, mas a potestade de administrar o sacramento da Eucaristia; daqui deriva a sua autoridade, que é sempre um serviço ao povo. Aqui está um grande desafio para os Pastores e para os teólogos, que poderiam ajudar a reconhecer melhor o que isto implica no que se refere ao possível lugar das mulheres onde se tomam decisões importantes, nos diferentes âmbitos da Igreja».

O caminho faz-se caminhando. Caminhemos de olhos postos naquilo que o Espírito Santo diz à Igreja…

Padre António Sílvio Couto

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19 de Abril de 2022