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Pastoral da Saúde: “A morte e o luto”

20221130-pastoral-saude

Novembro é o mês dedicado às Almas dos defuntos, em sua memória. Esta devoção manifesta-se através de ações de sufrágio pelos nossos entes queridos fiéis defuntos, mas também pelos defuntos em geral. Leva-nos a uma meditação profunda sobre a transitoriedade da vida humana, sobre a sua fragilidade diante de Deus.

Para o crente, falar de espiritualidade é falar da experiência de Deus, porque mais que falar sobre Deus, mais que pensar com a mente sobre Deus, é uma questão de senti-Lo com o coração.

A experiência proporciona-nos a primeira chave para aceder à compreensão, é a ciência ou o conhecimento que o ser humano adquire quando sai de si mesmo e compreende um objeto por todos os lados, não de forma teórica ou de livro, mas em contacto com a realidade.

A nossa sociedade não está longe de se tornar um pouco tanatófobica (medo excessivo da morte) aumentando processos de privatização da vivência do luto. O medo da morte tem muito a ver com o medo da mudança. A inseguridade perante a mudança intensifica-se ao pensar na morte como algo desconhecido, ao refletir sobre ela como uma ameaça transbordante, incontrolável e irreversível. Talvez estejamos a falar com mais propriedade sobre angústia.  No entanto, há que entender que “Morte” e “Morrer” não são sinónimos.  A morte é a cessação absoluta de todas as funções vitais, enquanto o morrer, é o processo pelo qual se chega à morte. E este processo é cheio de vida!

No luto, em função das experiências do passado, da educação recebida, do tipo de fé e de consciência e cultivo da dimensão espiritual, pode existir sentimentos de frustração e raiva, muitas vezes projetados em Deus, por outro lado também existe a possibilidade de viver este percurso em relação com um Deus proveniente de força, de esperança, refugio, relação, garantia de confiança em que o amor tem uma palavra mais poderosa que a morte. Ao fim ao cabo, a morte, é a oportunidade mais peculiar da vida humana.

Podemos dizer que o medo da morte conjuga-se no plural, e são medos perante ameaças concretas e definidas que se vão aproximando com o decurso do final da vida e que se vai fazendo experiência. Estão em relação com os recursos de que se dispõe na proximidade com aqueles que nos rodeiam. Por isso, a confiança que podemos inspirar e transmitir aos entes queridos, a quela que é transmitida pelos profissionais de saúde e sobretudo uma atenção e presença dedicada será o melhor antídoto para os mesmos. A aproximação com a vida de Jesus, revela-nos também a angústia experimentada perante a morte no seu diálogo com o Pai no Horto das Oliveiras.

O surgimento da medicina paliativa contribui para ressocializar a morte e o morrer, que de outra forma, se vê cada vez mais atirado para fora do mundo público e mais refugiado na esfera privada, levando a um isolamento. Pensar em acompanhamento por medicina paliativa tem um sentido humanizador e esperançoso perante o morrer humano, contribuindo para naturalizar o morrer e diminuir a intensidade de sofrimentos evitáveis e que podem ser aliviados.

Neste processo de morte, a esperança no luto impele a pessoa a lançar-se num dinamismo de ir mais além que em sentido técnico designa um hábito da natureza humana do homem, por obra da qual este confia de modo mais ou menos firme na realização das possibilidades de resultados positivos do que pede e deseja. São Tomás de Aquino faz a distinção entre esperança como paixão, esperança como fortaleza e esperança como virtude teologal que supõe uma implicação pessoal no processo que a determina.

O dinamismo da esperança apresenta características especificas, tais como a confiança, a paciência e a disponibilidade. A confiança como característica da esperança no luto em medida que necessita ser depositada em “Alguém”, convertendo-se num sentido radical em abandono. Não se trata de um abandono passivo, mas sim em confiar verdadeiramente em “Alguém”, sabendo que no que está nas nossas mãos, o que se deseja pode nunca ser plenamente alcançado. A paciência, por sua vez, no sentido de permanecer na fé pela constância, perseverança e fidelidade, pois a esperança quando é genuína realiza-se na paciência e é o pressuposto da paciência. A esperança opõe-se a uma atitude de resignação na vivência do luto, pois quem se resigna, não caminha!

A esperança é terapêutica no sentido de impedir a resignação, mas propõe a aceitação, ou seja, a incorporação positiva do fracasso na vida pessoal como ocasião para reordená-la, numa atitude positiva perante o inevitável. A palavra de Deus diz-nos que a esperança não defrauda, é dada por Deus ao homem e está relacionada diretamente com o amor de Deus: “Mas os pobres nunca serão esquecidos, nem se frustrará a esperança dos necessitados.” (Sal 9).

No entanto, a fé não anula a experiência humana da tristeza, como tão bem expressa Santo Agostinho nas suas Confissões, relatando a dor ocasionada pela morte de um amigo de juventude (Livro IV) e o repentino falecimento da sua mãe Sta. Mónica (Livro IX).

Aquele que espera vive num mundo mais sano, porque centra a sua vida no amor; igualmente; não há amor sem esperança. Esta é um ingrediente do amor como expressa São Paulo: “O amor tudo espera” (1 Co 13,7).

Ninguém é a esperança, mas todos podemos ser o eco da esperança, como ninguém é a saúde, mas todos podemos ser agentes de saúde. Só uma vida comprometida na esperança e no seu valor terapêutico terá sabor a amor e valerá a pena ser vivida, ainda que seja na adversidade da nossa limitação e vulnerabilidade humana.

Neste mês em que dedicamos algum tempo a celebrar a partida dos entes queridos, Nouwen explica-nos como só é possível celebrar esta partida onde coexiste amor e temor, alegria e dor, sorrisos e lágrimas. Celebração da morte é a aceitação da vida, na consciência cada vez mais clara da sua preciosidade; a vida é preciosa e valiosa, não só porque se pode ver, tocar e gostar, mas também porque um dia já não a teremos.

Celebrar a morte, significa aceitá-la como um mistério que há que viver em comunhão, é celebrar o mistério da vida que chega ao seu fim e que está invadida de amor. Nesta celebração confluem de modo harmonioso as três dimensões do tempo: o passado que se recorda e que se faz presente, e o futuro que se projeta e espera. Esta estrutura consciente da historicidade supõe viver de forma sana a dor do luto e por isso convida a acompanhar espiritualmente a quem se vê envolto por tão grandes mistérios.

No final da vida a celebração da fé vive-se através dos sacramentos, em especial o sacramento da celebração da misericórdia de Deus manifestado pelo perdão na reconciliação; a celebração da graça de Deus na doença pela unção dos enfermos e a Eucaristia/Viático nos momentos críticos finais da vida. A celebração de datas assinaladas, momentos especiais, o funeral pela Eucaristia e os ritos próprios que a nossa fé nos propõe recordam a memória daqueles que trazemos em nossos corações.

“Que fazes tu, poeta? Diz!
— Eu canto.
Mas o mortal e monstruoso espanto
Como o suportas?
— Canto.
E o que nome não tem, tu podes tanto
Que o possas nomear, poeta?
— Canto.
De onde te vem o direito ao Vero, enquanto
Usas de máscaras, roupagens?
— Canto.
E o que é violento e o que é silente encanto,
Astros e temporais, como te sabem?
— Canto”

Importa, pois, vivermos com alegria cristã a vida que nos foi dada, preparando-nos para viver uma “boa morte” e dar à vivência do Luto por aqueles que amamos a dimensão de encontro com o Pai de esperança na Ressurreição. Tal como nos diz o Catecismo da Igreja Católica sobre a comunhão com os santos: “Não é só por causa do seu exemplo que veneramos a memória dos bem-aventurados, mas ainda mais para que a união de toda a Igreja no Espírito aumente com o exercício da caridade fraterna. Pois, assim como a comunhão cristã entre os cristãos ainda peregrinos nos aproxima mais de Cristo, assim também a comunhão com os santos nos une a Cristo, de quem procedem, como de fonte e Cabeça, toda a graça e a própria vida do Povo de Deus”.

Carla Rocha, Enfermeira
Comissão Diocesana da Pastoral da Saúde de Setúbal


Fontes:
https://www.vatican.va/news_services/liturgy/2007/via_crucis/po/station_01.html
– Nouwen, Henri. J. M.; O curador ferido; pag. 100-110
– https://viciodapoesia.com/2015/09/04/que-fazes-tu-poeta-diz-eu-canto-poema-de-rainer-maria-rilke/

Suplementos:
– https://www.instagram.com/grupodeapoioaoluto/
– http://compassio.pt
– https://www.portugalcompassivo.pt/cidades.html
– https://agencia.ecclesia.pt/portal/luto-paroquia-de-alhos-vedros-disponibiliza-gabinete-para-ajudarem-processos-de-perda/?fbclid=IwAR0KyyKuOP1Os__OzSowyLy4AVe-KVz-pSJ57aNShKHe06SY7nE7ln0sXl8
– https://agencia.ecclesia.pt/portal/saude-as-pessoas-em-cuidados-paliativos-nao-estao-a-morrer-estao-a-viver/?fbclid=IwAR36SQb0M3IbeXdIAOatTqh8CuXYGYGMlxEU17_yq92j14XEgUlWyq3cLGI
– https://agencia.ecclesia.pt/portal/luto-aprender-a-gerir-sucessao-de-perdas-e-proposta-de-especialistas-do-instituto-de-sao-joao-de-deus-isjd/?fbclid=IwAR0xekMO1MzVr_ticaSbNR–4O89e8LdRe0TCDTpU4jZsI04R4KV_fX0uzo
– https://agencia.ecclesia.pt/portal/luto-a-morte-o-morrer-o-que-e-vital/?fbclid=IwAR2L6RONTu3hgTW8po_AGpTJbnocLqrrvXDJmtMykAEK09wTrhkozKw_Ao8

 

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30 de Novembro de 2022