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Fátima: Homilia de D. José Ornelas na Eucaristia de 13 de outubro

Fotografias de estúdio da Imagem de Nossa Senhora de Fátima

Irmãs e irmãos,

Este ano, celebramos o dia 13 de outubro de uma forma muito contida, no que diz respeito ao número de peregrinos, à sua proveniência e à forma festiva das manifestações que habitualmente caraterizam esta última grande peregrinação do ano. Todos sabemos que essa forma mais atenta e cuidada provém de uma atitude necessária e responsável perante os condicionalismos da pandemia que veio alterar radicalmente toda a vida da humanidade, sobretudo nos modos de relacionamento entre as pessoas. Trazemos a este santuário as nossas dores e as da humanidade, pedindo luz e força para vencermos esta pandemia.

Além desta, a nossa celebração é guiada por uma dupla referência: Antes de mais, celebramos a última das manifestações de Nossa Senhora aos pastorinhos, em 1917, aqui, na Cova da Iria. Em segundo lugar, também se celebra o aniversário da dedicação da Basílica de Nossa Senhora do Rosário, aqui erigida para memória e atualização desses acontecimentos. Deixemo-nos guiar pela Palavra de Deus que escutámos nesta solenidade, para que a nossa peregrinação possa ser iluminada por ela e dê fruto na nossa vida.

A primeira leitura que escutámos fala-nos da inauguração do templo de Jerusalém e da oração do rei Salomão nesse momento. Ele começa por reconhecer que o templo que mandou construir não pode ser um lugar onde Deus habita, no sentido de aí viver como os homens, num edifício e num lugar, por mais esplendoroso e evocativo que seja. Deus não se encontra num monumento de pedra, mas no coração e na vida daqueles que, como pedras vivas, formam a Igreja nesta terra, como nos diz a carta de Pedro que acabámos de escutar.

Os santuários e igrejas são lugares de relação e de comunhão. Comunhão entre as pessoas que para eles convergem e neles se reúnem, comunhão e relação com Deus, que quer habitar no meio do seu povo. No meio das nossas cidades e povoações ou ao longo das estradas que percorremos, estes espaços mostram que Deus não está longe de nós, não se alheia dos nossos percursos, dores, lutas e esperanças. Ele é um “Deus-Connosco”, que escuta a nossa oração, como pede Salomão.

A esta luz, é importante que as nossas paróquias e comunidades, as nossas dioceses e a Igreja disseminada pelo mundo sejam verdadeiras casas de Deus no meio da sociedade, pontos de referência e de acolhimento de quem busca apoio, sentido de vida e esperança. Sendo a casa do Pai do céu, a Igreja enche-se de filhas e filhos gerados pelo seu Espírito, que se tornam irmãs e irmãos, independentemente da sua origem, etnia ou estado social. Esta é a semente do mundo novo, o modelo fundamental da Igreja. Esta é a primeira mensagem que podemos levar desta peregrinação. Deus não está longe das nossas dificuldades e caminha connosco para tornar possível o nosso caminho.

Maria está naturalmente ligada, não apenas a esta igreja de pedra, mas à Igreja de pedras vivas que somos nós, sugerindo o seu modo de ser e impulsionando a sua missão entre os povos. Celebrar hoje a memória desta basílica dedicada à Senhora do Rosário, abre o nosso coração para entender e participar na vida e na missão da Igreja. 

No Evangelho, Maria recebe, como primeira, o dom do Espírito, que a cobre com a sua sombra, tornando-a Mãe da nova humanidade que tem como primogénito o seu Filho Jesus. Junto à cruz, ela está presente quando, do Coração trespassado do Salvador, jorra sangue e água, o dom da vida e do Espírito que forma a Igreja e, no Pentecostes está ao lado dos apóstolos, quando e Espírito dá início à Igreja. Ela acompanha, assim, não apenas a vida de Jesus, mas também a Igreja nos seus inícios e ao longo dos séculos.

Esta presença feminina e materna de Maria, a que se junta, desde a missão de Jesus e no início da Igreja um grupo de outras mulheres, lança uma luz de entendimento sobre a identidade e a missão da Igreja, não como um facto secundário ou subsidiário perante o protagonismo masculino, mas como um importante elemento constitutivo da Igreja. Acentuar o feminino e o materno não é apenas buscar um equilíbrio de poderes ou de influências na organização funcional da Igreja. Trata-se de mudar de paradigma: a liderança eclesial não está fundada sobre a ideia de poder, mas na vida, no cuidado e no serviço, utilizando todos os dons do Espírito na edificação da casa do Senhor, a partir do amor paterno/materno de Deus. Valorizar o papel da mulher contribui, decisivamente, para a valorização dos ministérios na Igreja, hoje demasiado concentrados nos ministérios ordenados.

E esse mundo novo manifesta-se nos sinais eloquentes do amor esponsal homem-mulher, no serviço e no cuidado da fragilidade pela maternidade e paternidade que geram filhos e filhas, irmãos e irmãs, na Igreja, casa de Deus. A primazia da vida, do serviço e do cuidado do mundo e da humanidade exige a presença de homens e mulheres, na diversidade dos dons de cada um, para o serviço dos irmãos e para a missão de construir um mundo mais justo e fraterno, inclusivamente nos lugares onde se tomam decisões para todos, como tem repetido o Papa Francisco.

Junto com o ministério dos apóstolos, há que deixar entrar na vida das nossas comunidades os sinais femininos e maternos de Maria e das Marias da Igreja: o perfume afetuoso da pecadora derramado nos pés de Jesus­­; as pequenas mas generosas moedas da viúva pobre; a súplica desesperada de uma mãe síria e de outra tradição religiosa que implora a cura da sua filha; as lágrimas das mães que perdem os seus filhos, como a viúva de Naim; a atitude silenciosa da adúltera, condenada na praça pública em nome da lei, pronta a apedrejá-la, despojando-a da vida, depois de lhe ter roubado a dignidade; as irmãs Marta e Maria, peritas em administração, serviço e hospitalidade gentil e acolhedora, na casa que acolhe Jesus e os seus discípulos. Faz-nos falta olhar, compadecer-se, acolher e sentar à mesa, na casa do Pai do céu, com alegria, dignidade e responsabilidade, todas as suas filhas e filhos. Assim, os dons e competências de cada um/a deles e delas poderá ser colocado ao serviço de todos.

Esta complementaridade na diversidade na casa de Deus que é a Igreja há de ter alicerces, não só na diversidade dos seres humanos, mas também na riqueza diferenciada de cada terra e de cada cultura deste mundo. Celebrar o dom desta basílica, casa de Deus dedicada a Maria, na dimensão internacional que assumiu o Santuário de Fátima, faz-nos experimentar a universalidade da nossa vocação na Igreja.

Vivemos num tempo em que movimentos populistas manipulam a nostalgia do passado, o medo real ou imaginário perante o desconhecido, o perigo do estrangeiro e do que pensa diferente, a ganância de possuir e dominar e até modelos religiosos para os seus interesses. Para isso, constroem muros, exacerbam nacionalismos egoístas e conflituosos, que impedem que se chegue a consensos mundiais para encontrar soluções para os problemas de todos, como a pobreza, a injustiça, a guerra e a depredação do planeta, que coloca em perigo o futuro, como indica o Papa Francisco na sua última encíclica “Todos Irmãos”. Este não é o projeto de Deus nem o caminho que Maria nos indica. Não é deste modo que se constrói a Igreja, casa de Deus para toda a humanidade.

A pandemia veio tornar mais visíveis estes problemas e mostrar também a necessidade de encontrar caminhos e soluções para todos. A dimensão dos problemas com que nos defrontamos exige soluções que contem com a participação de todos e cujos benefícios possam ser disfrutados também por todos. Estamos no mesmo barco e só é possível salvarmo-nos, se todos colaborarmos para que todos se salvem.

Maria, mulher, esposa e mãe ilumina o nosso modo de estar na Igreja e o nosso compromisso na sua missão de ser casa de Deus para toda a humanidade. Serva do Senhor para cumprir o seu projeto, ela ensina-nos a escutar a voz de Deus e a tornar-nos disponíveis para seguir o chamamento que Ele dirige a cada um/a, a fim de participarmos na missão da Igreja para um mundo melhor.

Como Mãe carinhosa fiel e inovadora, ela ensina-nos a coragem de ousar, para não fazer da fé uma exposição de peças de museu, de ter o gosto e a paciência de semear e esperar que o Reino de Deus tenha tempo de crescer e de dar frutos para saciar a fome do mundo.

Assim esta casa/Igreja será casa de Deus para toda a humanidade.

+ D. José Ornelas, Bispo de Setúbal

Foto: Santuário de Fátima

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14 de Outubro de 2020