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Reflexão: “Dos Evangelhos da infância… para hoje”

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Reflexão do Padre António Sílvio Couto sobre os designados “Evangelhos da infância” de Jesus

Explicando o que se entende por ‘evangelhos da infância’ situamo-nos nos capítulos 1 e 2 dos evangelhos segundo São Mateus (1,1-2,23) e de São Lucas (1, 5-2,52). Nestes quatro capítulos, colocados numa espécie de ‘introdução’ aos respetivos evangelhos, encontramos em sumário os grandes temas que serão desenvolvidos no corpo do texto por cada um destes evangelistas.

Nos ‘evangelhos da infância’ encontramos várias figuras/pessoas relevantes na revelação de Deus: Zacarias e Isabel, João Batista, José e Maria, pastores, Herodes e magos, Simeão e Ana… em cada um podemos perceber como Deus se lhe revelou e como continua, hoje, a interpelar-nos na nossa caminhada pessoal, em família e de forma eclesial. 

* O ‘evangelho da infância de Mateus’ tem um caráter fortemente apologético. O capítulo primeiro mostra que a messianidade é garantida pela sua origem – vide a ‘genealogia de Jesus’ – cf. Mt 1, 1-17: Jesus Cristo. filho de David, filho de Abraão numa espécie de artificialidade de conexão entre Jesus e ‘os principais depositários das promessas messiânicas (Abraão e David)’, evidenciando o evangelista que ‘nele encontra sentido toda a História de Israel’. Diferentemente é a ‘genealogia de Jesus’ no evangelho de São Lucas, colocada já fora dos ‘evangelhos da infância’ – Lc 3,22-38 – e destinada para os cristãos provenientes do mundo pagão e onde se faz a conexão entre Jesus Cristo até Adão ‘para acentuar a sua ligação com toda a humanidade’. O evangelho de São Mateus prossegue com o ‘anúncio do nascimento de Jesus’ a José – Mt 1, 18-25: José, descendente de David cumpre as profecias messiânicas de Is 7, 14.

O capítulo 2 divide-se em duas secções: 2, 1-12 e 13-23. Na primeira, como narrativa edificante, acentua-se a dignidade real de Jesus, nascido em Belém (cf. Mq 5, 1), reconhecida, indiretamente, pelo sinédrio e aceite pelo mundo dos gentios, representado pelos magos. Na segunda secção torna-se patente como Jeus, o chefe do novo povo de Deus, viveu na sua pessoa, e de modo mais eminente, as grandes experiências espirituais do Israel antigo – libertação do Egito e cativeiro (cf. Os 11,1; Jr 31, 15), dando ainda a São Mateus a possibilidade de responder à tipificação de Jesus como o ‘narazeno’ (cf. Mt 2,19-23)… 

* O ‘evangelho da infância de Lucas’ é uma composição literária com recortes literários de fina textura: duas séries de quadros se entrecruzam entre si: uma sobre a vida de João Batista e outra sobre Jesus, naquilo que se poderia considerar de dois dípticos: os das anunciações –1, 5-25 a de João Batista e 1, 26-38 a de Jesus; as dos nascimentos – o de João: 1, 57-80; o de Jesus: 2, 1-21. Digamos que os dípticos são pintados com o recurso à mesma técnica: o mesmo mensageiro (Arcanjo Gabriel) especializado dos mistérios dos tempos messiânicos; fórmulas análogas de saudação, reação da pessoa agraciada (Zacarias e Maria) e ulteriores detalhes da mensagem… nos dois casos, o primeiro quadro é preparação do segundo, isto é, no primeiro o prometido nascimento será ‘ex sterili’, enquanto no segundo o nascimento acontece ‘ex virgine’…o precursor e o próprio Cristo. As caraterísticas dos dois personagens – João e Jesus – são realçadas de forma clara.

Podemos ainda encontrar dois painéis suplementares: a visitação – Lc 1, 39-56 – onde se dá o primeiro encontro entre o Antigo e o Novo Testamento, pois as duas agraciadas reúnem-se numa atmosfera de alegria messiânica , reconhecendo a ‘velha’ Isabel a superioridade da ‘jovem’ Maria. Outro quadro – Lc 2, 21-40 – situa-nos no templo, numa espécie de apoteose, em que as figuras proféticas de Simeão e Ana aplicam a Jesus a essência de toda a esperança da salvação, anunciada no Antigo Testamento.

Em resumo: no ‘evangelho da infância de Mateus’ a figura principal é José, enquanto, no ‘evangelho da infância de Lucas’, depois de Jesus, a figura principal é Maria… sem esquecer ainda o tema da alegria, o papel importante das mulheres, sendo Jesus apresentado como o Salvador, sobretudo, dos pobres.

Diz-nos o Papa Bento XVI/Joseph Ratzinger, em ‘Jesus de Nazaré – a infância de Jesus’ – «Mateus e Lucas – cada um à sua maneira – queriam não tanto narrar ‘histórias’, mas escrever história: história real, sucedida, embora certamente interpretada e compreendida com base na Palavra de Deus. Isto significa também que não havia a intenção de narrar de modo completo, mas de escrever aquilo que, à luz da Palavra e para a comunidade nascente da fé, se revelava importante. As narrativas da infância são história interpretada e, a partir da interpretação, escrita e condensada.

Entre a palavra de Deus e a história interpretada há uma relação recíproca: a Palavra de Deus ensina que os eventos contêm ‘história da salvação’, que diz respeito a todos. Mas os próprios eventos desvendam, por sua vez, a Palavra de Deus e levam a reconhecer a realidade concreta que se esconde nos diversos textos» (p. 21).

Que este breve e conciso percurso pelos ‘evangelhos da infância’ nos possa ajudar a vivenciar melhor este tempo de proximidade ao Natal de Jesus.

Padre António Sílvio Couto, Pároco da Moita

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21 de Dezembro de 2021