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“Querida Amazónia”: Papa apela a novos caminhos assentes no “diálogo social”, na “espiritualidade inculturada” e na “ecologia integral”

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Os quatro sonhos do Papa (social, cultural, ecológico e eclesial) são os eixos da nova exortação apostólica“Querida Amazónia”, publicada esta semana.

Integração social e cultural, diálogo, respeito pelo “casa comum” e revitalização das comunidades cristãs são alguns dos “sonhos” do Sumo Pontífice para os quais exorta “todos a avançar por caminhos concretos que permitam transformar a realidade da Amazónia e libertá-la dos males que a afligem”.

 

“Sonho com uma Amazónia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida e sua dignidade promovida”

O Papa denuncia o exílio forçado dos povos amazónicos das suas terras pelas constantes campanhas de desflorestação e exploração mineira, obrigando-os a deslocar-se para as periferias das cidades onde cresce a “escravidão, sujeição e miséria”, bem como a “xenofobia, a exploração sexual e o tráfico de pessoas”.

“Às operações económicas, nacionais ou internacionais, que danificam a Amazónia e não respeitam o direito dos povos nativos ao território e sua demarcação, à autodeterminação e ao consentimento prévio, há que rotulá-las com o nome devido: injustiça e crime.”

Fazendo memória do tempo colonial, o Papa reconhece “as ofensas da própria Igreja” ao longo da história e pede perdão pelos “crimes atrozes” cometidos contra os povos nativos. Nos dias de hoje, com as “graves violações dos direitos humanos” cometidas na Amazónia, “não podemos permitir que a globalização se transforme num novo tipo de colonialismo”.

Para o Sumo Pontífice, “o desafio é assegurar uma globalização na solidariedade, uma globalização sem marginalização”, assente na educação, no empoderamento dos povos indígenas e no “espírito de comunhão humana”.

“Amazónia deveria ser também um local de diálogo social, especialmente entre os diferentes povos nativos, para encontrar formas de comunhão e luta conjunta”, acrescenta.

Foto: A12

 

“Sonho com uma Amazónia que preserve a riqueza cultural que a carateriza e na qual brilha de maneira tão variada a beleza humana”

Para o Papa Francisco, é fundamental promover a Amazónia “sem invadir”, “cultivar sem desenraizar, fazer crescer sem enfraquecer a identidade.” Os povos da Amazónia estão em risco devido a uma globalização em massa, insensível às “diferentes culturas e outras formas de civilização”.

Temos que evitar de considerar [os povos amazónios] como selvagens não-civilizados” declara o Papa, responsabilizando as autoridades locais e grupos económicos pela “dilaceração interior dos povos devido à perda dos valores que os sustentavam. As cidades, que deveriam ser lugares de encontro, enriquecimento mútuo e fecundação entre diferentes culturas, tornam-se palco dum doloroso descarte.”

“Cada povo, que conseguiu sobreviver na Amazónia, possui a sua própria identidade cultural e uma riqueza única num universo multicultural, em virtude da estreita relação que os habitantes estabelecem com o meio circundante, numa simbiose difícil de entender com esquemas mentais alheios.”

Mais uma vez, o Papa aponta o diálogo entre culturas como caminho de futuro: “É a partir das nossas raízes que nos sentamos à mesa comum, lugar de diálogo e de esperanças compartilhadas. Deste modo, a diferença, que pode ser uma bandeira ou uma fronteira, transforma-se numa ponte. A identidade e o diálogo não são inimigos. A própria identidade cultural aprofunda-se e enriquece-se no diálogo com os que são diferentes, e o modo autêntico de a conservar não é um isolamento que empobrece.”

 

“Sonho com uma Amazónia que guarde zelosamente a sedutora beleza natural que a adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas”

Hoje, os grandes interesses económicos e políticos, aliados ao desenvolvimento científico e tecnológico, ameaçam os ecossistemas, não só naquele espaço mas em todo o mundo. O Papa alerta que o “interesse de algumas empresas poderosas não deveria ser colocado acima do bem da Amazónia e da humanidade inteira”.

“O equilíbrio da terra depende também da saúde da Amazónia. Juntamente com os biomas do Congo e do Bornéu, deslumbra pela diversidade das suas florestas, das quais dependem também os ciclos das chuvas, o equilíbrio do clima e uma grande variedade de seres vivos.”

Os povos nativos inspiram “o cuidado e o respeito pela criação, com clara consciência dos seus limites” o que permitiu manter durante muitos séculos a preservação da floresta. “Para cuidar da Amazónia, é bom conjugar a sabedoria ancestral com os conhecimentos técnicos contemporâneos, mas procurando sempre intervir no território de forma sustentável, preservando ao mesmo tempo o estilo de vida e os sistemas de valores dos habitantes”.

O Papa considera urgente a criação de leis que tornem a preservação da floresta “inviolável” e a promoção de uma educação “que provoque o desenvolvimento de novos hábitos nas pessoas e nos grupos humanos”.

“Não haverá uma ecologia sã e sustentável, capaz de transformar seja o que for, se não mudarem as pessoas, se não forem incentivadas a adotar outro estilo de vida, menos voraz, mais sereno, mais respeitador, menos ansioso, mais fraterno” esclarece o Santo Padre.

Aos cristãos, o Papa exorta a que deixem despertar “o sentido estético e contemplativo que Deus colocou em nós e que, às vezes, deixamos atrofiar. Lembremo-nos de que, quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objeto de uso e abuso sem escrúpulos. Pelo contrário, se entrarmos em comunhão com a floresta, facilmente a nossa voz se unirá à dela e transformar-se-á em oração”.

Foto: EcologiaVerde

 

“Sonho com comunidades cristãs capazes de se devotar e encarnar de tal modo na Amazónia, que deem à Igreja rostos novos com traços amazónicos”

O maior o sonho do Papa é eclesial. Francisco considera que a ação pastoral da Igreja na Amazónia é “precária” e salienta a pertinência do anúncio do Evangelho, assente num “necessário processo de inculturação que nada despreza do bem que já existe nas culturas amazónicas, mas recebe-o e leva-o à plenitude.

“A autêntica opção pelos mais pobres e abandonados, ao mesmo tempo que nos impele a libertá-los da miséria material e defender os seus direitos, implica propor-lhes a amizade com o Senhor que os promove e dignifica. Seria triste se recebessem de nós um código de doutrinas ou um imperativo moral, mas não o grande anúncio salvífico, aquele grito missionário que visa o coração e dá sentido a tudo o resto” defende o Sumo Pontífice.

O Papa acredita que a Igreja, para crescer na Amazónia, “precisa de escutar a sua sabedoria ancestral, voltar a dar voz aos idosos, reconhecer os valores presentes no estilo de vida das comunidades nativas, recuperar a tempo as preciosas narrações dos povos”.

Esta “espiritualidade inculturada”, centrada em Cristo mas atenta às necessidades diárias das pessoas, pode ajudar numa recuperação cultural dos povos e ser “instrumento de caridade” no acolhimento aos pobres e migrantes e na defesa firme dos direito humanos.

No que respeita ao exercício do ministério dos sacerdotes, o Papa advoga que é importante determinar o que é específico do sacerdote de acordo com a Ordem sacra e o que pode ser delegado. Nas circunstâncias específicas da Amazónia “os leigos poderão anunciar a Palavra, ensinar, organizar as suas comunidades, celebrar alguns Sacramentos, buscar várias expressões para a piedade popular e desenvolver os múltiplos dons que o Espírito derrama neles”.

Contudo, as comunidades precisam dos sacramentos da Eucaristia e do Perdão porque eles fazem a Igreja. “Esta premente necessidade leva-me a exortar todos os bispos, especialmente os da América Latina, a promover a oração pelas vocações sacerdotais e também a ser mais generosos, levando aqueles que demonstram vocação missionária a optarem pela Amazónia.”

O Papa incentiva à formação dos agentes pastorais, especialmente dos presbíteros, à ordenação de mais diáconos permanentes e à capacitação dos consagrados e leigos, no sentido de assumirem mais protagonismo nas comunidades e constituírem “grupos missionários itinerantes”.

A Exortação Apostólica contempla um grande reconhecimento à presença de “mulheres fortes e generosas” que durante séculos “mantiveram a Igreja de pé nesses lugares com admirável dedicação e fé ardente”, recusando, contudo, o acesso ao Sacramento da Ordem.

As mulheres prestam à Igreja a sua contribuição segundo o modo que lhes é próprio e prolongando a força e a ternura de Maria, a Mãe” escreve o Papa, acrescentando que “A situação atual exige que estimulemos o aparecimento doutros serviços e carismas femininos que deem resposta às necessidades específicas dos povos amazónicos neste momento histórico”.

 

O exortação apostólica “Querida Amazónia” resulta da assembleia especial do Sínodo dos Bispos para a região pan-amazónica”, celebrada com o tema ‘Amazónia, novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral’, de 6 a 27 de outubro de 2019.

A região tem uma extensão de 7,8 milhões de km2, incluindo áreas do Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa; dos seus cerca de 33 milhões de habitantes, 3 milhões são indígenas pertencentes a 390 grupos ou povos.

JM

Foto de destaque: Vatican News

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13 de Fevereiro de 2020