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Igreja em Rede: Homilia de D. José Ornelas na Eucaristia de Domingo de Ramos 2020

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Liturgia do Domingo de Ramos

Homilia de D. José Ornelas, Bispo de Setúbal na Eucaristia celebrada na Sé de Setúbal.

A forma invulgar com que estamos a celebrar este Domingo de Ramos, com a nossa catedral quase vazia de fiéis, sem a caraterística procissão inicial dos ramos, contrasta com o ambiente que o Evangelho nos trazia da multidão festiva a acompanhar Jesus na sua entrada em Jerusalém.

No entanto, as leituras de hoje mostram que as aclamações e os cânticos de festa depressa mudaram, também em Jerusalém. A narração da paixão, mostra-nos o caminho doloroso dos últimos dias da vida de Jesus nesta terra, com a rejeição em lugar do acolhimento, o pedido de condenação em lugar das aclamações e a tortura e a morte na cruz, em lugar a entronização como Filho de David. Afinal, os sonhos dos discípulos e dos acompanhantes de Jesus caíram dramaticamente por terra. Parecia que tudo tinha acabado, com a morte de Jesus.

Mas Ele ressuscitou e, quando tudo parecia ter terminado, uma nova era estava a começar, que havia de mudar a humanidade. O mundo novo que Jesus anunciara, tinha de ser construído sobre bases diferentes das que os discípulos sonhavam, sobre valores diferentes dos que guiavam a sociedade do seu tempo. Os sonhos de glória, de sucesso e de felicidade dos discípulos tinham de ser purificados. E a liturgia deste domingo, também nas circunstâncias de contenção, preocupação, lágrimas e luto que vivemos, dão uma chave de compreensão e revisão das nossas atitudes, a partir da vida mesma de Jesus.

Para os discípulos, aquela semana entre a entrada de Jesus em Jerusalém e a sua ressurreição também os mudou radicalmente e começou a mudar o mundo. Eles tinham esperado esta gloriosa entrada na cidade santa. A aclamação da multidão dos peregrinos dava asas aos seus sonhos; tudo parecia correr sobre rodas. Esperavam a vitória de Jesus sobre os inimigos, a purificação da cidade, a eliminação do jugo estrangeiro, a colocação de um Israel purificado à testa das nações, para glória de Deus. Jesus tinha-os avisado que não era esse o projeto de Deus, mas eles não conheciam outra ideia de sucesso e de vitória.

A morte de Jesus, o triunfo dos astutos sem escrúpulos, foi o desabar de todos esses sonhos. Mas isso era necessário, para que eles entendessem as coisas de outro modo. Só depois, quando começaram a pensar em tudo isso, à luz da ressurreição de Jesus e o dom do seu Espírito, começaram a perceber que o mundo não tem viabilidade com esse tipo de vitórias.

Só então começaram a entender a preciosidade dos caminhos de Deus. Entenderam que a dor e a morte de Jesus não tinham sido inúteis, nem uma derrota de Deus. Perceberam que Ele, mais frequentemente se encontra entre as vítimas do que entre os opressores que as fazem; que Ele não conta as vitórias pelos inimigos que abateu, mas pelas vidas que salvou e pelos adversários que reconciliou; e que não tem inimigos, porque é Criador e Pai de todos.

Levados pelo mesmo Espírito de Jesus, começaram a pensar que também eles poderiam e queriam ser discípulos deste Mestre e Senhor; que estavam finalmente começando a entender… Começaram a sonhar diferente, mais ao jeito do Coração de Jesus… E foi assim que começou a Igreja. E espalhou-se por todo o mundo, porque eles começaram a ser expressão desse Homem que, sendo absolutamente são e capaz, portador de uma solução nova para todos, foi vítima do vírus da injustiça, do ódio, do egoísmo e da ganância. Tomou tão radicalmente a peito essa missão que não temeu ser vítima de tudo isso, para dizer que esses vírus e o vírus da própria morte têm cura.

Algo de semelhante se pode passar com esta pandemia que atingiu, como nenhuma outra, toda a humanidade. Tem-se dito que, depois do Covid-19, o mundo não voltará a ser o mesmo. Para muitos, de todas as culturas e condições sociais, não será mesmo. E, em muitos aspetos, é bom, para toda a humanidade, que assim seja, se tirarmos algumas conclusões desta crise, à luz da paixão, morte e ressurreição do Senhor da vida.

Demo-nos conta que somos todos limitados e todos necessários para vencer esta batalha;

  • Que se esquecermos as vítimas desses vírus, eles vão infetar os que se consideram saudáveis; que estamos no mesmo barco e o vírus atinge a todos.
  • Tornou-se mais evidente que as metrópoles de miséria e exploração podem infetar todo o planete, dar cabo da nossa economia, da nossa convivência e da nossa cidade.
  • Que mesmo o mérito formidável da nossa inteligência e da nossa tecnologia, não chega para resolver os nossos problemas e criar uma sociedade feliz, equilibrada e com esperança.
  • Que a vitória sobre o vírus não vem dos populistas que prometem facilidades, mas daqueles que arriscam a vida para salvar os infetados e criar um mundo possível para todos.

Se aprendermos pelo menos algumas destas lições e fizermos o que fizeram dos discípulos, colocando-nos também ao serviço de uma humanidade nova, se, como eles, começarmos a ter sonhos próximos do Coração de Cristo, então, também os vírus podem ser vencidos.

A leitura atualizada da paixão de Jesus lembra-nos os dias sombrios que vivemos, mas também a luz que muita gente neles tem derramado. Jesus carregou o peso das nossas dores e epidemias (que não eram as suas); desfez o ódio que divide e mata, pedindo o perdão para os seus assassinos; recuperou os discípulos desfeitos pela sua cobardia, incompreensão e traição; viveu o aparente abandono de Deus e a troça pela sua fidelidade e entregou a sua vida exausta nas mãos do Pai… Morreu connosco, morreu a nossa morte, para nos abrir o caminho da vida que possuía.

Com Jesus que carrega a cruz – imagem de todas as dores e opressões da humanidade – a par dos que cantam vitória e inspiram desprezo e ódio, cruzaram-se também muitos rostos que nos estimulam: o Cireneu que carrega a cruz ao seu lado; as mulheres que choram compadecidas e o acompanham até à morte, enquanto os discípulos homens tinham debandado; a mãe que o acolhe morto nos braços, imagem de amor fiel que nem a morte enfraquece; Nicodemos e José de Arimateia, que vencem finalmente o medo e a vergonha e ganham coragem para sepultar este condenado que todos procuram evitar; o ladrão, crucificado com Jesus, que representa todos os desonestos e assassinos da terra, que se percebe, no último momento, do poder e o amor de Deus; o inimigo por excelência, o centurião romano que, “vendo como Ele morrera”, professa a mais correta fé da Igreja: “verdadeiramente Ele era o Filho de Deus”.

Quanta gente hoje está a fazer isso nos hospitais, na assistência aos nossos anciãos, no diligente serviço que prestam, na vigilância e segurança e que nos dão, no respeito pelas normas de ficar em casa, no carinho que vão partilhando nas nossas famílias, na esperança ativa na superação da crise e no raiar da continuação da vida em moldes mais justos e solidários.

Parecia que tudo tinha acabado… mas estava só a começar. Se é verdade que há muito sofrimento maldito (aquele que é infligido aos outros) há muito sofrimento e muita morte que são luz e indicam caminhos novos e novo futuro, porque abrem caminho, mesmo com lágrimas e dor, mostrando novos modos de pensar a humanidade e a vida.

Bendito seja Deus por todos aqueles, que mesmo sem conhecerem Jesus, o imitam no dom de si, para aliviar sofrimento e dar vida. Que o seu testemunho e a sua luz nos estimulem a colaborar também para que esta crise seja ultrapassada e um mundo mais humano possa surgir.

Se fizermos nossas as atitudes de Jesus e daqueles que com ele se cruzaram e, por Ele, se deixaram contagiar, então também as dores de hoje podem ser dores de um novo parto para a humanidade. O caminho da cruz de Jesus não é um caminho de derrota, mas da vitória do amor e da vida.

 

+ D. José Ornelas

Bispo de Setúbal

 

Nota Pastoral: Celebrar a Semana Santa em tempo de contenção e de crise

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06 de Abril de 2020