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Igreja em Rede: Homilia de D. José Ornelas na Eucaristia do IV Domingo da Páscoa, Domingo do Bom Pastor

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A imagem de Jesus como Bom Pastor vai-se tornando cada vez menos transparente nos nossos dias, em que a maior parte das pessoas nunca viu um rebanho autêntico, com um pastor que cuida dele. A função do pastor é manter o rebanho unido, para que nenhuma ovelha se perca; defender corajosamente quando o lobo ataca; conhecer e velar pelas suas ovelhas para que estejam de boa saúde e cuidar das que estão fracas ou doentes; conhecer e guiar a todas por caminhos seguros até às melhores pastagens.

Estas imagens sugestivas fazem parte da tradição da Bíblia para falar da atitude de Deus para com o seu povo, sobretudo o profeta Ezequiel: “Eu mesmo cuidarei das minhas ovelhas e me interessarei por elas, como o pastor cuida do seu rebanho. Reconduzi-lo-ei de todas as partes… Arrancá-los-ei de entre os povos e os reunirei dos vários países, a fim de os reconduzir à sua própria terra” (cf. Ez 34, 11-13). É, pois, uma imagem que exprime libertação, cuidado, comunhão que cria identidade, justiça e dignidade: que forma um povo.

Jesus assume esta imagem para falar da sua missão como enviado do Pai, do estilo da sua liderança, do seu modo de inspirar e guiar aqueles que o seguem, para que sejam livres, felizes e criativos. Por isso Ele é chamado o Bom Pastor:  um pastor profundamente afeiçoado ao seu rebanho e disposto a tudo para que “tenham vida e a tenham em abundância”.

Ele avisa também contra o perigo dos maus pastores, que se servem a si mesmos em vez de servirem o rebanho; que desejam atrair, mas para manipular; liderar, mas para dominar sobre aqueles que os seguem. Muitas vezes, são pessoas com muita esperteza, mas que vivem só para si próprias e utilizam as pessoas e abusam delas para obterem os seus interesses pessoais. São abusadores e predadores, em vez de defensores e cuidadores. Outras vezes são simplesmente pessoas medíocres e frustradas que utilizam o lugar que ocupam para dominar, achincalhar e abusar.

Pelo contrário, Jesus apresenta-se como modelo e protótipo do verdadeiro chefe, do verdadeiro líder, do dirigente próximo daqueles que o seguem, do “pastor com cheiro a ovelha”, como costuma dizer o Papa Francisco. Para Ele, liderar e guiar significa servir. Não deixa nunca de ser Mestre, mas lava os pés aos discípulos com carinho e espírito de serviço; ensina e corrige, mas nunca deixa cair um só daqueles que o Pai lhe deu, mesmo quando eles erram e fraquejam; nunca deixa de ser Senhor, mas diz aos que o rodeiam: “já não vos chamo servos mas amigos”. Isso é mesmo o que Ele pretende transmitir: liderar, guiar, conduzir é um ato de amor ou então é um falhanço e um perigo.

Chefes assim, que ensinam mais com o exemplo do que com as palavras, arrastam jovens e adultos e criam com eles famílias e comunidades fraternas, livres e criativas; geram novos relacionamentos e criam novos projetos, Igreja, mundo novo. Fazem falta pastores, líderes assim, nas empresas, na política, na Igreja, nas organizações internacionais.

Mas não pensemos só nesses: Jesus quer fazer de nós todos pastores, capazes de servir, de estar próximo, de reunir, de propor, de orientar… de amar, como Ele.

  • Pastores como Jesus, são, antes de mais, os pais, que cuidam, educam, corrigem e fazem crescer com amor os filhos, que lhes abrem caminhos de liberdade e de vida e olham com orgulho e ternura, os esforços e trabalhos que isso comporta… e os avós, tios e demais família que criam carinho e identidade e confiança à sua volta.
  • Pastores e líderes são os professores, que continuam a missão dos pais, e sabem semear sonhos na vida dos seus alunos, tornando-se mestres e modelos, por aquilo que sabem e ensinam, mas sobretudo por aquilo que são.
  • Pastores são os médicos que cuidam dos doentes, como nesta pandemia (são verdadeiramente imagens do bom pastor que carrega aos ombros a ovelha cansada e ferida). São pastores sobretudo quando não curam só dos vírus e das doenças, mas sabem partilhar a estima com quem atendem e cuidam.
  • São preciosos pastores e pastoras aqueles que, nos lares e outras instituições, cuidam dos anciãos, nos serviços mais pessoais e essenciais, ou são laços vitais para aqueles que se encontram isolados nas suas casas.
  • Pastores são os profissionais, trabalhadores e empresários que se dedicam a criar os bens e serviços de que todos precisamos para viver, desde os que limpam as ruas, aos que buscam nos laboratórios e aos que dirigem empresas e países.
  • Pastores de dar e criar vida podemos ser todos, desde crianças até à velhice e à morte, sempre que não vivamos a pensar apenas em nós próprios, mas saibamos semear o bem, a alegria e a esperança, como Jesus fez. Pastor é alguém que se interessa pelos que o rodeiam, que olha com misericórdia e cuida com amor do mundo à sua volta.

Mas Jesus é um Pastor especial que dá sentido a todas as nossas lideranças e chefias. Por isso, Ele começa por usar outra imagem – a da porta – por onde entram e saem as ovelhas: “Eu sou a porta das ovelhas… se alguém entrar por mim será salvo. Há de entrar e sair e achará pastagens”.

Quanto mais capaz e dedicado for o pastor (o líder, o professor, os pais) mais vão beneficiar aqueles a quem ele se dedica. Mas tudo isso tem um limite no mundo dos homens. Jesus, porém, além de homem, é o Pastor Filho de Deus, o Senhor da vida. Quando diz que é Pastor, no sentido de conduzir, de ser modelo, de dar vida e vida em abundância, fala da vida do Pai do céu. Para atingir esse nível de vida, para mudar este mundo e atingir o mundo em plenitude, temos mesmo de passar por Ele, pela sua humanidade e pelos horizontes de vida que Ele nos abre.

Ele mesmo é a porta de entrada, de acesso a uma vida que só Ele pode dar: é um saber, um conhecer, um gostar, um viver com que nos abre, não apenas ao saber coisas, mas ao viver com Deus, no seu Espírito. Mas é também o ter acesso a um “rebanho” que é a nova família, a Igreja, formada por aqueles que vivem do Espírito do Pai, são por Ele guiados e se tornam pastores com Ele.

Mas é também porta para sair. Jesus não é um Pastor cioso. É como um pai e uma mãe que criam filhos para a liberdade e os guiam e lançam na vida, para que cresçam, sejam felizes e capazes de dar vida ao mundo que dela precisa. Jesus é a porta da missão, para reunir toda a humanidade na casa do Pai, para cuidar deste planeta e abrir-nos a mundos novos e novos céus.

É assim que Ele quer que sejam aqueles que chama para se dedicarem totalmente ao serviço da sua Igreja: missionários e missionárias no mundo. Gente com coração livre, afetuoso e dedicado, que infunde alegria e coragem, sem pretender ser vedeta, que não responde à violência na mesma moeda, mas sabe enfrentar os lobos vorazes, mesmo quando isso representa oposição e morte. É gente dessa que hoje pedimos ao Senhor que envie à sua Igreja, neste domingo de oração pelas vocações de consagração.

Neste tempo em que começamos a abrir-nos depois da contenção a que nos obrigou esta pandemia, com a preocupação de cuidar e defender a vida, levemos esta dupla imagem de Jesus Pastor e Porta da vida. Vamos bem precisar destas duas dimensões: da porta que nos defende dos perigos, dos falsos pastores, da pseudoliberdade, que colocam em perigo a nossa vida e a dos outros. Mas, cada vez mais, vamos precisar que essa porta das nossas casas, das nossas igrejas e das nossas vidas, se abram às dimensões do mundo e da reconstrução da vida, das atividades, de que todos temos necessidade. Não será um caminho fácil, o que temos por diante, e vai requerer de nós a atitude de Jesus, Bom Pastor, para que ninguém seja deixado para trás e possamos criar um mundo melhor.

Espero também que se criem reais condições para que seja possível abrir gradualmente e com segurança as portas das nossas igrejas, guiados pelo nosso Bom Pastor, Jesus. Ele é um Pastor sábio, capaz de combinar prudência e coragem, discernir os tempos, mas sempre sem medo ao serviço da vida e da vida em abundância.

Deixemo-nos guiar pelo bom Pastor, imitando a sua atitude de cuidado, de serviço a quem precisa. Ele é a Porta para um futuro de compromisso e de amor até ao dom da vida que sonhamos para as nossa famílias, para a Igreja e para o Mundo.

+ D. José Ornelas, Bispo de Setúbal

 

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04 de Maio de 2020