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Liturgia Diária: Homilia de D. José Ornelas na Eucaristia do XV Domingo do Tempo Comum

O Bispo de Setúbal, D. José Ornelas, presidiu à Eucaristia solene em Honra de Nossa Senhora do Carmo, celebração integrada nas festividades da padroeira, na Paróquia do Samouco.

 

Aqui, nesta linda paróquia de Samouco, Alcochete, situada nas margens do rio Tejo, com a sua beleza e o seu equilíbrio delicado, encontramos o quadro adequado para acolher a festa de Nossa Senhora do Carmo (Carmelo) e da Palavra da Escritura que acabámos de escutar.

A devoção a Nossa Senhora do Carmo ou do monte Carmelo nasce de um grupo de monges que, no século XIII, se fixam neste monte, situado no norte de Israel, atraídos pela beleza áspera e solitária da natureza. Era também uma montanha cheia de tradição, ligada a Elias, o primeiro grande profeta de Israel. Deste modo, a ligação de Deus, da sua Palavra e da natureza integram-se no projeto da pessoa humana e da sociedade.

Manter este equilíbrio é fundamental para um projeto humano consistente e sustentável, como a nossa experiência nos está a demonstrar, tendo em conta os desastres ambientais que não deixam de nos atormentar e de pôr em risco o nosso futuro. A visão cristã do mundo faz-nos perceber que a terra é um dom primordial de Deus para a vida da humanidade. Nós, humanos, somos chamados a cuidar e trabalhar esta terra, de modo a que ela possa ser a casa comum de todos e não apenas de alguns. Este não é, pois, apenas um tema económico nem ecológico. É igualmente uma realidade que tem de ser iluminada pela nossa fé.

Uma visão ecológica e equilibrada do mundo, que não é inimiga do progresso e do desenvolvimento. Pelo contrário, é a única maneira de haver verdadeiro progresso e verdadeiro futuro para a humanidade. A discussão em curso sobre este tema coloca a nossa península de Setúbal, particularmente esta zona de Alcochete e Montijo, na ordem do dia. É de louvar todo o esforço que está a ser feito na busca de equilíbrio entre a procura de soluções para as necessidades atuais sem que se comprometa o futuro da terra e das gerações que se seguirão à nossa. Espero muito que estas buscas se façam com toda a honestidade, de modo que as soluções que se encontrem possam ser sustentáveis em termos de respeito pela natureza. Esta é a primeira palavra que me sugere hoje a celebração nestas belas e frágeis margens do Tejo, que esperam de nós uma atitude responsável e inspirada pela espiritualidade da Senhora do Carmelo, no seu fascínio pela beleza da natureza e do seu Criador.

A Palavra de Deus que hoje escutámos vem ao encontro desta preocupação de uma vida e de uma sociedade em harmonia consigo própria, com Deus e com a terra que Ele criou.

A imagem do profeta Isaías é brilhante: “Assim como a chuva e a neve que descem do céu não voltam para lá sem terem regado a terra, sem a terem fecundado e feito produzir, para que dê a semente ao semeador e o pão para comer, assim é a Palavra que sai da minha boca…”. De acordo com a visão bíblica do cosmos da qual falámos antes, a natureza e os humanos são parte deste mundo e devem ver-se em interação harmónica e sustentável. O trabalho e a ação do homem na natureza fazem parte deste projeto de Deus. O trabalho, a técnica e a ciência são necessárias para a própria sobrevivência de um “planeta humanizado”.

Mas isso apenas não chega: é necessário a Palavra de Deus – “a chuva que cai do céu” que faz com que dê fruto essa conjugação da natureza e do trabalho do homem. E a Palavra diz duas coisas: Palavra é comunicação e relacionamento – ninguém pode fechar-se em si –  é a abertura fundamental para perceber-se como pessoa, em harmonia com o mundo e com os outros, é a abertura a Deus. Em segundo lugar palavra tem a ver com inteligência, capacidade de perceber e de exprimir esse conhecimento de forma inteligível. Isso é o que se chama a verdadeira ciência, ou melhor, sabedoria. E a verdadeira sabedoria é aquela que entende o projeto de Deus para esta terra com todos os seus habitantes.

Sem essa palavra de Deus, o homem pode trabalhar, fabricar, construir e acabar por destruir a terra onde trabalha e destruir-se a si mesmo. Colocar-se à escuta da natureza, à escuta uns dos outros, à escuta de Deus, é muito importante para uma vida feliz e de sucesso.

E esta atitude de escuta é particularmente importante em momentos de crise como aquele que vivemos nesta pandemia a nível mundial. É necessário, à luz desta pandemia planetária, escutar os gritos da terra e dos que nela habitam. É necessário perceber que este mundo não é perfeito e que Deus conta connosco para encontrar soluções e para encontrá-las de forma que cheguem a todos. De contrário, o nosso trabalho e a nossa ciência não vão conduzir a um mundo feliz, justo e sustentável. Esta crise pode ajudar-nos a perceber que estamos todos no mesmo barco e que ou nos salvamos todos ou afundamo-nos todos.

Mas a crise e esta palavra do profeta Isaías fazem-nos entender igualmente que nós não somos senhores da Terra nem temos respostas absolutas para todos os vírus, para todo o sofrimento e para a morte. Essa chuva que vem do céu e dá o pão a quem trabalha não é apenas para alimentar o corpo que, de um modo ou de outro, mais cedo ou mais tarde, termina, voltando à terra mortal de que é formado. Essa Palavra/chuva tem outra força porque liga o ser humano da terra ao Deus do céu. É uma Palavra de inteligência para entender o projeto de Deus e tomar decisões sábias para si, para os outros à sua volta e para a terra. É uma Palavra (re)criadora que nos liberta dos limites do nosso ser terreno e nos faz participar da vida do Senhor da criação.

É isto que diz São Paulo quando nos diz na leitura de hoje que toda a criação espera um futuro melhor, pela ação de uma humanidade renovada. Este mundo pode ser melhor porque Deus não se esqueceu de nós, nesta pandemia. Ela não é um castigo de Deus e Ele está ao nosso lado. Mas espera também que sejamos capazes de tomar medidas inteligentes e responsáveis, não apenas para ultrapassar esta pandemia, mas para que, à luz daquilo que aprendemos, saibamos criar um mundo mais sustentável, mais amigo da Terra, mais sustentável e com futuro para todos, porque será um mundo fecundado pela Palavra de Deus.

E, para terminar, o Evangelho que escutámos dá-nos uma mensagem de esperança e desafio. Diz-nos, em primeiro lugar, que esta Palavra dá fruto e fruto abundante: 30%, 60% e até 100%. Isto é, o mundo, com o esforço inteligente do homem e guiado pela Palavra de Deus – a semente do Evangelho – é chamado a crescer, a tornar-se mais belo, a dar os frutos necessário à vida e ao futuro da humanidade.

Mas diz-nos também que, se não se escuta a voz da Terra, da humanidade e dos seus grandes problemas e desafios, se não se escuta a voz de Deus e do seu projeto, essa Palavra pode não dar fruto. E é evidente como, em tantas situações, vemos que isso acontece. Porque as pessoas não querem mesmo ouvir, porque estão fechadas no seu egoísmo, nas suas ideias, nos seus interesses (a semente na estrada). Outras porque até gostam e se entusiasmam, mas ficam-se pela emoção e não chegam a tomar a sério o que ouvem e sabem que é certo – deixam-se levar pela moda, pelo que dizem as redes sociais e a palavra não se transforma neles em vida e em decisões justas. Outras ainda, diz Jesus, até sabem o que é correto, mas acabam por sucumbir ao medo de assumir as consequências de decisões e comportamentos corretos ou ainda à tentação da corrupção do dinheiro ou do poder, traindo o projeto que a Palavra anunciava.

Hoje, à beira do Tejo, como outrora à beira do mar da Galileia, esta Palavra de Deus continua a cair como chuva que cai do céu. Que bom seria que ela caísse no nosso coração, que afastasse a secura destes tempos de pandemia e de todos os vírus que impedem que a verdadeira Palavra de justiça, de liberdade, de solidariedade e de paz seja escutada com coração de coragem e de misericórdia.

Esta é uma Palavra de desafio e de chamada de atenção, mas é sobretudo uma palavra de encorajamento e de confiança. A chuva que cai do céu, pode tardar, mas vai chegar. Que ela encontre o nosso coração aberto e disponível para a acolher, como terra boa que produz fruto de alegria, de justiça e de futuro para nós, para aqueles que nos rodeiam e para a nossa Terra, a casa comum da nossa humanidade.

+ D. José Ornelas, Bispo de Setúbal

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14 de Julho de 2020