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Caminhos de Santiago: Bispo diocesano participou em iniciativa que junta os Municípios de Setúbal e Palmela

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No passado Domingo, dia 25 de julho, na Festa de São Tiago, Apóstolo, os Municípios de Setúbal e Palmela, num iniciativa conjunta, lançaram, na Igreja de São Tiago, no Castelo de Palmela, o percurso “Caminhos de Santiago” na península de Setúbal. O Bispo de Setúbal, D. José Ornelas, esteve presente nesta apresentação e destacou o aspeto espiritual de percorrer este “Caminho”.  

De acordo com nota avançada no site do Município de Setúbal, a rota de peregrinação dos Caminhos de Santiago na península que tem “mais de noventa quilómetros de percursos” e que “integra, agora, o itinerário central português, está a ser valorizada com um novo projeto de promoção e de reforço de segurança”. 

Leia, abaixo, a comunicação completa do Bispo diocesano que realçou o  peso histórico e religioso do Apóstolo São Tiago na região de Setúbal, afirmando que a peregrinação pelo “Caminho de Santiago pode ser útil a todos os níveis: espiritual, social, cultural, científico, económico, na criação de um mundo mais justo e em paz até à revelação total do mundo de Deus.”

AS com fotos do Município de Setúbal

Peregrinar pelo Caminho de Santiago

Preparar caminhos

É muito significativo que estejamos aqui a falar do caminho de Santiago, num tempo em que as ruas das cidades, estradas e autoestradas ficaram mais desertas e mesmo os caminhos deste tipo, foram conhecendo uma radical diminuição de caminheiros e peregrinos, por causa da pandemia. E, talvez por isso mesmo, seja útil parar e pensar no sentido daquilo que fazemos, dos caminhos que percorremos e que ajudamos a preparar e a percorrer. Em muitos casos, vai ser mesmo necessário e urgente criar caminhos novos, rever percursos e encontrar novos modos de percorrer os caminhos de sempre.

De facto, o ser humano é, por natureza, e por caminho histórico de milénios, um ser peregrino em busca de futuro e de novos mundos. Mas é, ao mesmo tempo, um ser de memória e de saudade, pelos mundos dos seus percursos passados. É, podemos dizer, um peregrino do tempo e do espaço, tanto no que diz respeito às memórias e saudades, como aos projetos e sonhos de futuro.

Peregrinar, percorrer, viajar, caminhar em direção a um destino, não é apenas um deslocar-se, mas tem um objetivo, seja ele lúdico, económico, científico, cultural ou espiritual; e confere sentido novo às rotas que se percorrem e aos lugares a que elas se destinam, criando novos locais de referência, seja ao longo do caminho, seja no destino. Assim nascem rotas e destinos turísticos; escolas, universidades e congressos de saber e de arte; rotas comerciais do petróleo, da seda, da droga; feiras de tecnologias, da moda, ou do livro; centros de negócios com dimensão cada vez mais global; centros de alta finança e paraísos fiscais… Isto, sem falar da instantânea comunicação digital, que permite quase uma ubiquidade global da realidade planetária. Vivemos num mundo em acelerada movimentação, onde parar é considerado um morrer, mas onde o correr, tantas vezes não leva a lado nenhum, ou pior ainda, faz aumentar o pesadelo advertido de um fim apressadamente antecipado.

E, de repente, veio a pandemia… e tudo parou: as pessoas fecharam-se em casa, os carros ficaram nas garagens, os aviões não levantaram voo, os grandes paquetes ficaram nos portos… e os animais selvagens vieram passear nas ruas e nos parques das cidades desertas daqueles que as tinham construído e nelas costumavam apinhar-se apressados.

Talvez seja preciso dar outro sentido à mobilidade, ou melhor, é talvez esse o sentido do nosso estar aqui, a pensar num caminho multisecular que ainda hoje nos desafia. Podemos mesmo dizer que percursos como este, com uma acentuação do ir a pé, vai adquirindo uma atenção crescente, quase em contracorrente do modo moderno de deslocar-se que coloca toda a atenção na velocidade e no ir mais longe: veja-se a recente corrida mediática ao turismo do espaço.

Este tipo de percursos de vetusta idade estão a ganhar novos adeptos nos nossos dias e a península de Setúbal está cheia destas tradições, com metas bem inseridas na memória comum: Fátima e Santiago; os “Círios” que levam ao Cabo Espichel, à Arrábida, à Atalaia; as procissões por terra e pelo mar, os passeios higiénicos e terapêuticos; a busca de um modo mais humano, ecológico e natural de viver… uma saudade que é sintoma de busca de novas rotas, novas metas, novos horizontes, como dizia o nosso poeta: “mudem de rumo; mudem de rumo; já la vem outro caminho”.

Para todos, mas especialmente para quem tem responsabilidade na sociedade, na governação nos seus diversos níveis, na economia, nas instituições, na educação, na Igreja… este movimento não pode passar desapercebido e o caminho de Santiago é uma dessas ocasiões, não para tirá-lo do museu e fazer uma exposição, mas para perceber a sua importância e tornar presente a sua energia.

Quero sublinhar apenas alguns dos aspetos que me parecem mais relevantes nesta forma de mobilidade:

Redescobrir a natureza, a terra que se oferece para ser descoberta, entendida, percebida

Aprender a caminhar direito foi uma etapa fundamental na evolução da humanidade: o “homo erectus”. A agilidade das pernas, permitiu libertar as mãos e desenvolver o cérebro, para que o deslocar-se pudesse ter metas percetíveis e transmissíveis e para que o deslocar-se pudesse ser orientado para metas memorizadas, partilhadas e sonhadas-planeadas em comum. Paradoxalmente, parece que esta ligação entre as pernas e o cérebro vai conduzindo a uma perda da mobilidade dos membros inferiores, levando-nos a perder esta fundamental habilidade e convertendo-nos, cada vez mais, em “homo sedens”, que precisa de ajuda das máquinas para se deslocar.

Do ponto de vista biológico e médico todos sabemos que isso não é um progresso e conhecemos bem as consequências para a saúde e para o ambiente: em vez de centrarmos a atenção no caminho, focamo-nos na máquina, nas “applications” que nos dão resultados imediatos e sem esforço. Isso é mau em si mesmo, mas tem de ser bem equacionado. O sucesso passou do homem para os instrumentos, cada vez mais “inteligentes”, que vão guiando e condicionando a vida presente e a planificação do futuro. Para o bem e para o mal, vamo-nos tornando mais semelhantes aos nossos telemóveis: plataformas onde se instalam aplicações que fazem coisas. E, cada vez mais, vamos perdendo a independência simples do “homo erectus”, incapazes de resolver as questões essências da vida sem essas nossas criaturas. Se isso tem inegáveis vantagens, conduz-nos também ao risco bem real de deixarmos de ser nós a gerir essas aplicações como “instrumentos”, mas a sermos por elas geridos, seguidos, condicionados e controlados a todo o momento, sem nosso consentimento e sem que sejamos nós a ditar as regras do jogo e a planear o nosso caminho.

O andar a pé, nestes percursos como o caminho de Santiago, tem uma dimensão importante que é o contato imediato com a terra, com a natureza, com o ambiente, com a cidade, tanto para perceber a sua beleza e utilidade, como simplesmente para estabelecer a imprescindível ligação com a terra-mãe, para se dar conta dos constantes atentados que a põem em risco e ameaça o caminho global da humanidade. Sem esta ligação, nós humanos deixamos de o ser, separando-nos do ambiente que nos permite viver e nos sustenta.

O peregrino é aquele que usa o caminho, a natureza, mas não se considera seu dono. Ele passa, mas o caminho fica para outros peregrinos da vida. O predador é aquele que se apropria e devora o seu ambiente. Isso é bom num ecossistema integrado e equilibrado, mas é catastrófico quando um elemento inquina e destrói todos os outros. Isso não é uma vitória, pois quem devora aquilo e aqueles que o cercam acaba por destruir a sua própria fonte de vida.

Daí o desafio de cuidar e dar a possibilidade de fruir e viver deste contato com a natureza, no respeito, na admiração e na preservação para o futuro da humanidade. Quem é responsável pelos percursos da humana peregrinação tem de ter um espírito e uma atitude de peregrino, como cuidador dos caminhos por onde todos passamos. Os caminhos de sentido e sabedoria do viver têm de ter na base esta integração harmónica com o nosso mundo, com a terra, casa comum da humanidade.

Caminhar numa terra habitada, cuidada e humanizada

Como diz o Papa Francisco nas Encíclicas “Laudato Si” e “Fratelli Tutti”, esta relação com a terra tem de ser feita harmonicamente com os humanos, as suas necessidades e capacidades, que precisam de reaprender a viver com a mãe terra: uma terra habitada, trabalhada, humanizada e tantas vezes desumanizada pelo homem. As cidades, as estradas e as atividades humanas, as indústrias, a arquitetura e a arte, a cultura fazem parte deste mundo onde vivemos. O peregrino – sobretudo se vai a pé – dá-se conta, cruza-se e interage com tudo isso.

O percurso não se faz apenas por florestas e desertos que convidam à interioridade e a si próprio, mas atravessa cidades, aldeias, campos cultivados, fábricas, hospedarias e centros de comércio que convidam à relação e à integração da viagem. Se é verdade que peregrinar é um caminho interno da pessoa, essa busca de si tem de ser sempre confrontada com a realidade do mundo conhecido e estranho, de tal modo que o peregrino, no caminho, se torna outra pessoa, enriquecida, questionada e confrontada com toda essa realidade.

Determinantes são os encontros e relações ao longo do caminho. A Bíblia fala de tantos encontros deste género: à beira do poço, numa praia ou num barco, numa casa que acolhe, num mendigo socorrido, mas sobretudo no próprio caminhar juntos: “pelo caminho, em Cesareia de Filipe”; a caminho de Emaús, reinterpretando caminhos passados e descobrindo as novas dimensões da vida; a caminho de Jerusalém, confrontando-se com a opção pelo serviço e dom total da vida; a caminho de novas terras, seguindo o carro de um etíope que se torna primícias da peregrinação intercultural do Evangelho… Na peregrinação da vida, há locais e encontros que marcam. O percurso para o santuário de destino fica semeado de santuários de caminho, que já lá estavam, ou que se tornam tal, para cada peregrino específico, como lugares e percursos de revelação e de sentido.

No caminho de Santiago é necessário que haja esta preocupação de encontrar lugares de encontro que sejam significativos, que proporcionem descoberta, encontros que suscitam novas relações e marcam vidas. Mas também na nossa Península de Setúbal, há que apontar “vias de sentido” para esse reencontro pessoal e com companheiros/as de viagem. Não faltam locais nem percursos de todo o interesse: precisamos de aliar criativamente as tradições do passado com as capacidades de hoje, não num propósito de alienar, mas de criar novo e integrado sentido para o hoje e para o futuro. A chegada de uma multidão de jovens de todo o mundo na JMJ 2023 (Jornadas Mundiais da Juventude), podem ser uma ocasião para lançar um tal projeto.

Peregrinar para o santuário

O peregrinar tem uma meta, normalmente um santuário, um local emblemático, um ponto de identificação, criador de identidade e de sonho de futuro.

Muitas vezes, a peregrinação tem uma motivação pessoal (um voto, uma penitência, um desejo de clarificação, de esforço pessoal, de curiosidade científica, de sede espiritual, de sentido), mas também de grupo (no passado os peregrinos não viajavam sós, até porque era perigoso). Hoje o turismo religioso vem juntar – de uma forma que uns acham promíscua, outros integradora de sentido – novas motivações e sobretudo um caráter facilitador de massas e de simples passantes, que nem sempre se dão ao trabalho de entrar espiritualmente na peregrinação e fazem dela um simples passeio desatento.

Mas o santuário – qualquer que ele seja – torna-se ponto de convergência e identificação dos peregrinos, que se associam à sua dimensão espiritual e às consequentes atitudes humanas, culturais e espirituais que ele difunde, constituindo-se em fonte de identidade, de cultura, de espiritualidade. Isso é bem evidente no Caminho de Santiago, em relação, não apenas a Espanha, mas a toda a Europa, a ponto de mobilizar, ao longo dos séculos, inúmeros grupos de peregrinos, forjando uma identidade europeia, a partir da diversidade dos povos que a compõem e que para aqui convergiram.

Por outro lado, esta identidade manifesta-se também, em tempos de grande instabilidade e violência, numa forma de defesa e de conquista, para a formação da cristandade, associada à questão dos lugares santos e das sanguinosas guerras que provocou. Não é raro que os caminhos do santuário sejam instrumentalizados e desviados da sua motivação original, tornando-se, mobilização que não busca sentido, nem o rosto de Deus, mas já parte armado do sento forjado e leva-o como imposição e arma fanática de ataque. Então, o caminho torna-se uma concentração marcada pela exclusão daquilo que é diferente. Torna-se dogmático em vez de ser busca e revelação, apodera-se dos caminhos originariamente diversificados, criando escravos de sentido e não criadores de sentido, torna-se um vórtice sôfrego e destruidor, em vez de ser promotor de liberdade, de criatividade e de futuro. Também aqui, temos de escolher entre ser peregrinos do sentido, da vida, de Deus, sempre abertos à sua presença reveladora em cada pessoa, local e tempo; ou levar a nossa verdade, já feita à nossa medida, que se vai impondo à nossa volta, cegos a qualquer manifestação de Deus sempre vivo e criador de vida.

O santuário representa uma meta, mas não se destaca do caminho que leva até ele. É o lugar da celebração, do estar juntos, de criar identidade e força comum, mesmo na diversidade dos caminhos que ali conduziram. Por isso é muito importante estabelecer metas coerentes e sábias. Nesse sentido, o santuário não é o termo da caminhada, mas o lugar de abrir novos horizontes e mostrar novos caminhos. No fundo, o santuário serve só como lugar de entrada no sentido transcendente do mundo e da vida. O santuário-meta que não se deixa transcender, renascer, purificar e renovar… que não se torna caminho, perde o seu sentido e transforma-se em prisão.

Por isso, aquilo que o Caminho de Santigo sublinha é mesmo o facto de caminhar, de tal modo que a celebração no santuário, sendo sempre o coroar de um percurso de caminho na estrada pelo interior de si próprio, torna-se abertura a novo caminho e a novos horizontes que dá nova leitura do próprio santuário.

É isso que Jesus entende quando afirma: “Destruí este templo e eu o reconstruirei em três dias” (Jo 2,19), pois o novo tempo que começa, terá um novo templo que é Ele próprio: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a vida” (Jo 14,5), pois enceta um modo de viver, no Espírito, que guia os que o seguem ao longo da vida e conduzem à superação de todos os santuários, pois levam à presença do próprio Deus. Por isso, o livro do Apocalipse (Revelação) afirma que na nova cidade, na plenitude dos tempos, não haverá nenhum Templo/Santuário: “Templo, não vi nenhum na cidade; pois o senhor Deus, o Todo-Poderoso, e o Cordeiro são o seu templo” (Ap 21,22). Na realidade, qualquer santuário apenas realiza a sua função ao apresentar-se e ser entendido como etapa existencial do caminho da vida e da Igreja, que cria horizontes para a transformação pessoal e social, até à própria superação de tudo na comunhão com Deus o Senhor da vida e da história.

É isso que o Papa indica como “caminho sinodal” para a Igreja: O próprio caminho torna-se um santuário itinerante na transformação pessoal e na formação da identidade e da comunhão daqueles que o percorrem.

Peregrinar para um santuário, não pode ser simplesmente descongelar e servir uma receita do passado, mas dar vida à energia humana e espiritual das suas origens, integrando-a na complexidade do mundo de hoje. Não se trata de rejeitar ou mudar a história, mas de purificar a memória, integrando a luz e a sombra do passado, num projeto válido para o presente e o futuro. Há que fazer a peregrinação da vida, não apenas como mobilização externa, mas num caminho interior de descoberta de si próprio e em relação com um mundo que se atravessa com respeito, sem querer impor-se ou destruir. Se o peregrino destrói o caminho por onde passa ou quer tornar-se o seu dono, perde a sua identidade de peregrino e leva consigo apenas cinzas. Se olha, discerne, aprende e continua a caminhar, vai-se enriquecendo pelo caminho e enriquece o percurso com a bênção que recebe e que vai deixando.

É assim que o Caminho de Santiago pode ser útil a todos os níveis: espiritual, social, cultural, científico, económico, na criação de um mundo mais justo e em paz até à revelação total do mundo de Deus.

+ José Ornelas, Bispo de Setúbal

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30 de Julho de 2021